Acredito, e sei que muitos não concordam, que o trabalho do editor não se limita a acompanhar o processo de produção dos livros, mediar contato com revisores e diagramadores etc. Isso o transformaria num um “gerentão” de projetos. O editor tampouco é um agente literário, que busca espaços para fazer o autor circular, cava pautas etc. Apesar disso, um editor livreiro (figura presente principalmente em editoras independentes) terá também sob suas mãos o peso, literalmente falando, de carregar caixas a eventos, inscrever livros em prêmios. Mas essa também é só mais uma faceta do trabalho.

Em 18 de outubro de 2019, estava na fila de autógrafos do livro Solo para vialejo. Postei no meu Instagram uma foto com a autora com a seguinte legenda: “Solo para vialejo, um dos grandes livros do ano. Anotem”. Errei por pouco: no último dia 25 de novembro, foi eleito o Livro do Ano pelo Prêmio Jabuti. Alguns acreditam que um editor precisa de “faro”, mas acho que o trabalho de edição envolve todos os sentidos de maneira especial. É sobre isso que quero falar neste texto.

Faro

Cada livro tem uma história que transcende o tempo. Antecipar o sucesso de um livro nem sempre é fácil, mas quando se tem diante de si um grande livro, como Solo para vialejo, é obrigação do editor não apenas acreditar, mas empenhar-se para que o projeto alcance suas potencialidades. Chame isso de faro, se quiser, mas não deveria haver mérito nisso. A lógica do mercado, no entanto, interfere na percepção do editor, como se ele ou ela estivesse numa feira de especiarias. Assim, não se sente o cheiro de nada, nem que esfreguem em seu nariz. A história da literatura está cheia de livros que foram rejeitados por editores e depois viraram best-sellers ou livros cult. E de editores arrependidos.

Penso no editor que rejeitou Avalovara, de Osman Lins, como alguém que deve ter carregado a culpa de não ter o faro aguçado para aquela que seria uma das obras primas da língua portuguesa.[1. O fato é relatado pelo próprio Osman em carta ao escritor Hermilo Borba Filho no livro Osman e Hermilo: correspondência, organizado pelo professor Anco Márcio Tenório e que tive a honra de editar para a Cepe] Mas o olfato, talvez porque confundido com intuição, parece pouco valorizado quando se trata de decidir como investir dinheiro em um livro. A razão dos números nem sempre é boa conselheira para arte.

Visão

O olho do editor não precisa ser o do revisor, embora eu seja um inimigo ferrenho de órfãs, viúvas e forcas (falo sobre isso nesse artigo aqui). A visão do editor, em especial o de literatura, leva em conta questões que vão além da norma. Aliás, compreender o desvio, a subversão como efeito estético é tão importante como encontrar um deslize ortográfico. É tão comprometedor trocar um “s” como tacar um lugar comum de mal jeito. Mas nem é sobre isso ainda: o editor olha a obra com o distanciamento que o autor normalmente não mais terá, tão impregnado que está dela. É um editor que verá que a estrutura que funciona na cabeça do autor não é necessária, que descobrirá outros ângulos não percebidos pelo autor ou pela autora.

Outro aspecto da produção do livro em que a visão do editor pode ser demandada, dependendo da liberdade que se tem na editora, é o design gráfico. Embora o olhar do editor não seja o do designer, não consigo deixar de pensar um livro em sua totalidade, discutindo o projeto gráfico, a capa. Um projeto que me orgulha é o de Condenados à vida, de Raimundo Carrero, tão coletivo que foi assinado por toda a equipe da editora. Como editor da Mariposa Cartonera, onde pinto uma a uma cada capa, esse aspecto é parte integrante do trabalho. Destacaria o trabalho de edição de Atlântico, mini-novela de Ronaldo Correia de Brito, semifinalista do Prêmio Oceanos, único livro cartonero a alcançar esse feito.

Audição

Mas de nada servirá esse olhar se o editor não for, em primeiro lugar, um bom ouvinte. Nunca é demais lembrar que será o nome do autor o que estará estampado na capa e não o do editor. Por isso, um editor não pode ser arrogante ao ponto de querer impor sua poética durante o processo de edição. Os “editores autores” sempre caminham no fio dessa navalha, e a vaidade, Fábio, sempre tocará à porta.

No entanto, ouvir os desejos do autor não significa acatá-los. É preciso uma escuta mútua, numa relação de confiança que se estabelece entre editor e autor. Gosto sempre de ouvir o autor falar sobre seu livro, antes de editá-lo. Mesmo que seja para perceber que há outra coisa ali que ele não mencionou, seja porque não percebeu, seja porque não a considera importante. Mas o editor não pode deixar passar potencialidades da obra, é sua obrigação apontá-las, mesmo que o autor ou autora não queiram escutá-lo.

Tato

Para alguns editores, uma das coisas mais difíceis é tratar com os autores e autoras. Discordo: basta evitar condescendência ou covardia. Aliás, tudo o que um autor ou autora não precisa é de um editor covarde ou condescendente que não lhe diga exatamente o que precisa ouvir: que essa ou aquela solução não funcionam, que se pode cortar aqui e ali, que a distribuição dos versos na página pode ser de outra maneira, enfim, lidar com todas as questões estéticas com honestidade, sem ferir susceptibilidades.

O tato é essencial, claro, mas nunca se pode deixar de lado o diálogo aberto. O editor é um leitor privilegiado e, por isso mesmo, precisa oferecer ao autor ou autora o que tem de melhor, Por outro lado, se o autor é sensível ao ponto de evitar o toque a todo custo e não abrir-se a esse diálogo, pouco poderá fazer o editor. Nesses casos, lembro do Stephen King, que disse que “Escrever é humano, mas editar é divino”. Como escritor que teve bons editores, que me livraram de alguns papelões, confirmo.

Paladar

O paladar, para o editor, deve ser o mais ambivalente dos sentidos. Isso porque sua vida não será tão fácil se ele não aprender a engolir alguns pratos bem indigestos. Confesso que tive poucas oportunidades de topar com pedras na sopa, mas vez ou outra elas aparecem. Normalmente, encaro com naturalidade a decisão do autor ou autora de rejeitar todo e qualquer aviso sobre um ingrediente que não harmoniza ou totalmente fora do prazo. Mas se o autor é intragável, o que fazer? Ser profissional, o que pode significar um simples “não, obrigado”, um “passar bem” ou um “como quiser”.

Às vezes, a melhor solução pode ser a de Galileu, que após ter que negar a teoria heliocêntrica diante da inquisição, disse: “Eppur si mouve” (“Ainda assim, ela se move”, referindo-se à Terra). Nem sempre cabe ao editor escolher o prato do dia, principalmente quando se edita mais de 100 títulos por ano, como já foi minha experiência, Mas, normalmente, se tiver sorte, sobrará tempo para delícias. Não é sempre que se edita o livro do ano, mas, no final, o que resta é apenas seu nome no colofão ou uma nota editorial, como a que fiz questão de assinar em Solo para vialejo. Pense em um livro que editei com gosto!

A escolha do editor

É importante que o autor e a autora tenham clareza sobre o tipo de editor que precisa. Alguns, querem um leitor especial, mas precisam de alguém que os ajude com a circulação do livro; outros só precisam de alguém que gerencie o processo e não se envolvam em seu processo criativo (são raros, mas existem autores assim). Seja como for, é essencial que o relacionamento entre editor(a) e autor(a) seja fluido, para que o processo de publicação do livro seja proveitoso para todos. Se gostou deste artigo, por que não o compartilha em suas redes? 
 

Um editor para chamar de seu

Tenho mais de dez anos de experiência com edição e posso ajudar você a tirar o sonho da gaveta ou do HD. Peça uma leitura de avaliação hoje.

Newsletter

Assine gratuitamente e receba atualizações quando houver novas postagens no blog.

4 Comentários
  • Clayton Levy
    Postado às 16:33h, 06 abril Responder

    Gostei muito. Aprendi mais. O editor para além do editor.

  • Rômulo César Melo
    Postado às 08:27h, 10 dezembro Responder

    Excelente texto. Felizes os autores que tenham a sorte de possuirem editores com essa visão. Parabéns .

    • Wellington de Melo
      Postado às 11:13h, 11 dezembro

      Grato, Rômulo! Obrigado pela leitura.

Comente