Por Renata Beltrão [1]Texto publicado originalmente no Lombada Quadrada,  21 de janeiro de 2018

Se a produção artística carrega as marcas do tempo e do espaço onde foi produzida, as obras surgidas nesta década no Recife terão em comum, fatalmente, o desconforto com os rumos que ocupação urbana vem tomando em minha cidade natal.

Os filmes Recife frio (curta metragem) O som ao redor Aquarius, de Kleber Mendonça Filho; o documentário Um lugar ao sol, de Gabriel Mascaro; a análise sobre as imagens do fotógrafo amador Ivan Granville em O terceiro homem, de Frederico Toscano; diria até que Atlântico, novela de Ronaldo Correia de Brito – são todos exemplos de obras que se movem a partir dessa inquietação compartilhada, que se debruça também sobre a permanência de sistemas de poder oligárquicos e quase coloniais na capital pernambucana.

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Felicidade, de Wellington de Melo, compartilha desse contexto e usa como pano de fundo um fato real e recente para retratar uma cidade cujas relações sociais esgarçadas se refletem no caos urbano e são retroalimentadas por ele. Publicado pela Editora Patuá, o livro toma como gancho o Ocupe Estelita*, oferecendo uma alternativa quase distópica aos rumos que uma radicalização do movimento poderia tomar: expulsos da ocupação pela polícia, os ativistas passam a transmitir ao vivo seu próprio suicídio, jogando-se do alto dos arranha-céus que poluem a paisagem da cidade.

Quem conduz a trama é Ademir, morador de uma pensão e trabalhador de um subemprego numa fábrica de próteses, de onde tem vista privilegiada para a corrupção que envolve a compra dos produtos pelo poder público local. É a uma cobertura que ele vai quando seu patrão o manda buscar dinheiro produzido nesse esquema, numa alusão à altitude na qual o crime do colarinho branco opera – altitude essa que substitui as casas grandes dos velhos engenhos de cana-de-açúcar onde antes se exercia o poder.

Ademir se envolve com o movimento sem um objetivo muito claro e sem qualquer ideologia; talvez numa tentativa de encontrar um rumo qualquer. Pobre, negro e com dono de uma relação atribulada com pais e irmãs – uma delas, trans -, ele sabe que não existe um lugar na cidade para quem tem sua origem e seus desejos. Em torno de Ademir circulam outros personagens igualmente escanteados pela cidade, como o porteiro da pensão e Zê, a sua irmã trans.

São várias as formas que Wellington de Melo utiliza para materializar o não-lugar por onde transitam esses personagens. Na praça de alimentação de um shopping, a cor da pele de Ademir causa mais desconforto do que o grupo de jovens brancos tramando placidamente um suicídio coletivo. Mas ainda quanto ao não-lugar, o meu trecho preferido é um diálogo curto e absolutamente corriqueiro, que acontece quando Zê vai a uma loja de roupas:

“Débito ou crédito?”
“Dinheiro, querida”.

Felicidade aponta na direção de que o embate do movimento Ocupe Estelita é, de certa forma de casa grande econômica contra casa grande intelectual, uma briga na qual gente como Ademir é mais instrumento do que participante. É também como instrumento que ele se sente diante de Ignácio, o escritor para quem ele faz suas confidências. Na relação entre eles, é permanente a descrença de Ademir quanto à serventia da literatura e o uso que o escritor faz das histórias de pessoas reais em suas criações.

O livro inteiro é como uma longa carta de Ademir para Ignácio, num intrincado jogo de metalinguagem e talvez de autocrítica – uma certa angústia diante da eterna pergunta: pra que serve a literatura, afinal? Qual o seu poder efetivo de influir sobre a realidade? É um questionamento nada desprezível vindo de quem vem: além de escritor, Wellington de Melo é editor e coordenador da Mariposa Cartonera, editora artesanal que, inclusive, apoiou o Ocupe Estelita com edições especiais, cuja renda foi revertida para a causa.

No fim das contas, Felicidade é sobre o Hellcife, mas é principalmente sobre os abismos particulares que se concentram no abismo da cidade; ela própria um buraco invertido, em que as bordas estão nas coberturas dos arranha-céus, enquanto para a maioria resta apenas o chão.

Gostou? O livro está à venda no site da Editora Patuá ou no bar Patuscada, perto da Vila Madalena, em São Paulo.

Nesta década, uma conhecida construtora da cidade arrematou um terreno público em local estratégico do Recife em um leilão posteriormente questionado por suspeita de fraude; pretendia construir um empreendimento com torres de alto padrão à beira da Bacia do Pina, região que liga o bairro de Boa Viagem (a praia) ao centro histórico. Se executado, o projeto alteraria definitivamente uma paisagem icônica da cidade e pela qual seus habitantes têm o maior carinho. Surgiu então o movimento Ocupe Estelita, que ganhou certa projeção nacional quando a construtora tentou demolir os armazéns do terreno na calada da noite, o que causou a imediata mobilização pelas redes sociais, resultando na ocupação do espaço por algumas semanas, até a demolição ser barrada na Justiça. Durante a ocupação, foram realizadas várias atividades culturais voluntárias – inclusive shows – até que a reintegração de posse foi ordenada pela justiça. O movimento continua ativo e a pendenga se arrasta até hoje.

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1 Texto publicado originalmente no Lombada Quadrada,  21 de janeiro de 2018
1 Comentário
  • Pingback:Unidade - Wellington de Melo | escritor
    Postado às 09:55h, 30 novembro Responder

    […] Já não acreditava tanto nisso quando publiquei meu curiosamente também fragmentário Felicidade, mas sei que o tema (que não é a felicidade, claro) está posto na forma que escolhi. Forma e […]

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