Tenho o que podia chamar de preconceito de leitor: quando leio livros de ficção, é super importante a primeira página, o soco inicial que o autor dá para começarmos nossa jornada juntos. Claro que parece um lance meio The Voice, em que você escolhe o destino de um artista em poucos segundos, mas não posso deixar de levar isso em consideração.

Nessa postagem falarei sobre os sete dos melhores começos de romance, incluindo um bônus de um livro recente que me impressionou. Comento, em cada um deles, um pouco sobre a técnica que cada autor utilizou. Esclareço de cara que é uma lista pessoal e que você está totalmente autorizado a incluir sua própria lista nos comentários, colocando também o que chama a sua atenção em cada um. Vamos à lista.

1. Sem saída para o sonho

Quando­ certa­ manhã­ Gregor­ Samsa­ acordou­ de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama meta­morfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre­ suas costas­ duras­ como coura­ça­ e, ao levan­tar­ um pouco­ a cabe­ça,­ viu seu ventre­ abaula­do,­ marrom,­ divi­di­do­ por nervu­ras­ arquea­das,­ no topo do qual a cober­ta,­ prestes­ a desli­zar­ de vez, ainda­ mal se susti­­nha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremu­lavam desamparadas diante dos seus olhos. – O que aconte­ceu­ comi­go?­ – pensou­.

Franz Kafka, A metamorfose

Claro que é um lugar comum, mas como deixar de fora dessa lista de melhores começos de livros a clássica novela de Kafka, publicada pela primeira vez em 1915. Por isso, olhe este começo desconcertante. Talvez fosse preciso seguir até o próximo parágrafo para perceber a genialidade de Kafka: “Não era um sonho­. Seu quarto,­ um autên­ti­co­ quarto huma­no,­ só que um pouco­ peque­no­ demais,­ permanecia calmo entre as quatro paredes bem conhecidas”. Desfeita qualquer possibilidade de salvação por meio do onírico, Kafka estabelece a atmosfera de angústia desde o começo.

Sempre trabalho com meus alunos A metamorfose como um grande livro sobre a inadequação, que é o tema principal do livro e sua grande alegoria. Gregor Samsa está preso em um mundo de ingratidão, desprezo e infelicidade. Será que Kafka foi inocente com a escolha do nome da personagem? Samsara, do sânscrito-devanagari, que significa “perambulação”, simboliza o fluxo dos seres vivos através das suas múltiplas existências. Gregor ou Gregório significa, vejam só, “desperto”. Gregor Samsa, preso na roda eterna de sua(s) vida(s) como homem/inseto, está condenado a presenciar toda a crueldade humana de olhos abertos, bem abertos.

 

2. Desleixo enganador

Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: “Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames”. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem.?

Albert Camus, O estrangeiro

Albert Camus começa a que considero sua obra prima — o título do meu romance de estreia já deveria deixar claro — de uma forma que parece enganar o leitor, pela simplicidade e pelo aparente desleixo com a narrativa, o que, na verdade é seu truque principal. Seguindo a premissa de dar as cartas da narrativa desde o começo, Camus também nos apresenta um Mersault apático com o mundo, seco e questionador do status quo, por meio da linguagem. As escolhas linguísticas não são aleatórias: frases curtas, vocabulário simples, sintaxe direta são feitas sob medida. O famoso e cortante “Aujourdhuimaman est morte”, de maneira crua, é a frase usada pelo narrador para comunicar algo que, para pessoas correntes, seria uma notícia desesperadora. Em seguida, apresenta uma dúvida totalmente insignificante diante da notícia mesma da morte da mãe: refletir sobre o dia correto da morte, baseado no telegrama, comunicação igualmente fria, o que revela que não é só o Mersault, mas a sociedade que o condenará que tem a mesma frieza. Não há concessões neste que é um dos mais cruéis inícios de romance.

3. Estilo indireto livre 2.0

Muchos años después, frente al pelotón de fusilamiento, el coronel Aureliano Buendía había de recordar aquella tarde remota en que su padre lo llevó a conocer el hielo. Macondo era entonces una aldea de veinte casas de barro y cañabrava construidas a la orilla de un río de aguas diáfanas que se precipitaban por un lecho de piedras pulidas, blancas y enormes como huevos prehistóricos. El mundo era tan reciente, que muchas cosas carecían de nombre, y para mencionarlas había que señalarlas con el dedo.?

Gabriel García Márquez, Cien años de soledad

Esse é sem dúvida meu começo preferido. García Márquez consegue dar um nó na cabeça do leitor e colocá-lo desde a primeira frase em seu universo mágico. Márquez começa com um “muitos anos depois”, sem que o leitor saiba a que momento efetivamente ele se refere (depois de quê?). Logo em seguida, já anuncia que a personagem será fuzilada no futuro, dando outro salto temporal para, em seguida, arrastar leitor e narrador para o passado, para “a tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”, uma frase por si só misteriosa, mas que é a porta para o discurso indireto livre: a partir daqui, a voz do narrador e a de Aureliano Buendía se misturam, mas não qualquer Aureliano, mas aquele que foi com o pai ao circo dos ciganos. Por isso a visão mítica do rio e seus “ovos pré-históricos”, por isso as coisas carecem de nome e é preciso apontá-las. O mundo era recente para a criança, e seu olhar encontra a magia das coisas. Não é fantástico?

Em tempo: neste vídeo, falo um pouco mais sobre o começo de Cem anos de solidão.

4. A aliteração sedutora

Lolita, luz da minha vida, fogo da minha virilidade. Meu pecado, minha alma. Lo-li-ta: a ponta da língua faz uma viagem de três passos pelo céu-da-boca abaixo e, no terceiro, bate nos dentes. Lo. Li. Ta. Pela manhã, um metro e trinta e dois a espichar dos soquetes; era Lo, apenas Lo. De calças práticas, era Lola. Na escola, era Dolly. Era Dolores na linha pontilhada onde assinava o nome. Mas nos meus braços era sempre Lolita.?

Vladmir Nabokov, Lolita

Nabokov nos presenteia uma das personagens mais complexas da literatura universal, o professor Humbert Humbert, que assim começa sua narração sobre a enteada e amante Lolita. Nunca o nome de uma personagem foi tão bem-escolhido para representar sua essência, e Nabokov deixa clara sua intenção quando o professor pronuncia cada sílaba com uma lascívia digna apenas de um professor pervertido de língua – e esse é outro truque do autor, porque a descrição baseada numa antromorfização fonética cabe a esse personagem. É um começo de livro que você lê em voz alta, dada a musicalidade que possui. Percebam como a força das aliterações com “T” se transformam em aliterações líquidas (sensuais?) com “L” e “S” ao final do trecho. Fantástico.

Também tenho um vídeo em que falo sobre A metamorfose. Clique aqui.

5. O bem, o mal: miragem

— Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí vieram chamar. Causa dum bezerro: bezerro branco, erros, os olhos de nem ser — se viu —; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram — era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas… Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente — depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. 

João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas

Claro que na lista não poderia faltar um dos livros mais monumentais da literatura ocidental, que para meu assombro só ganhou uma edição em Portugal no ano passado — como estamos separados, a despeito da língua que supostamente compartilhamos. Rosa ergueu uma muralha de linguagem, construindo em primeira pessoa a voz de Riobaldo, que assim começa sua narrativa:

Perdoem ter que resumir em dois parágrafos o que daria no mínimo um ensaio (podem ver um pouco mais neste vídeo): a voz de Riobaldo, desde o primeiro momento, se coloca em diálogo com esse interlocutor, no alpendre de sua casa. Sabemos que é um visitante de fora, a quem Riobaldo pacientemente explica seu lugar, o sertão. Na cena, Riobaldo vai ao encontro de seu visitante, que o espera no alpendre, depois de ter dado uns tiros, algo que faz por hobby todos os dias. Como saber se era um “tiro em gente” ou “tiro de verdade”? Pelos sinais da natureza, pela atenção aos detalhes. Rosa estabelece o contrato ficcional que deve permear toda a obra com essa sutil insinuação.

Outra chave que aparece: a presença do mal e a percepção do mal, muitas vezes confusas e contraditórias. Os causos são utilizados ao longo do livro para marcar pontos de vista sobre a existência ou não do demônio como uma entidade exterior. Riobaldo mais adiante esclarece: “o diabo vige dentro do homem”. E não é assim? O bezerro, com máscara de cachorro e olhar como o de um humano, uma aberração, um desafio à natureza, a representação do mal, como o sentimento de ser aberração e deslocado o amor de Riobaldo por Diadorim, sua neblina. Tudo está posto desde o começo, mas só descobriremos muito tempo depois.

6. O narrador irônico

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.?

Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas

Sempre que alguém tasca o epíteto “Realista” para descrever ou tentar classificar Machado de Assis — que recentemente entrou para a lista de autores não recomendados para menores segundo o governo fundamentalista neo-pentecostal de Rondônia — preciso controlar o riso. Machado é um autor incrivelmente divertido, com um humor ferino e irônico, a ponto de brincar com toda a tradição narrativa ocidental, a começar pela Bíblia. Ora, o narrador defunto vai contar sua história pelo fim, ou seja, pela morte, tornando a narrativa “mais galante” e mais nova. Que sacada. É uma pena que sejamos apresentados a Machado justamente quando não somos, na maioria, capazes ainda de perceber sua genialidade. Nesse sentido, a escola faz um desserviço ao insistir nas listas de leituras obrigatórias e no ensino baseado na historiografia e em artificiais classificações de escolas literárias. Machado de Assis realista? Bah!

7. Sutileza do detalhe

Chamem-me Ismael. Aqui há uns anos não me peçam para ser mais preciso —, tendo-me dado conta de que o meu porta-moedas estava quase vazio, decidi voltar a navegar, ou seja, aventurar-me de novo pelas vastas planícies líquidas do Mundo. Achei que nada haveria de melhor para desopilar, quer dizer, para vencer a tristeza e regularizar a circulação sanguínea. Algumas pessoas, quando atacadas de melancolia, suicidam-se de qualquer maneira. Catão, por exemplo, lançou-se sobre a própria espada. Eu instalo-me tranquilamente num barco.

Herman Melville, Moby Dick

O começo de Moby Dick, de Melville, é talvez uma das maiores comprovações de que uma má tradução pode comprometer a compreensão de uma obra. Quem não já viu alguma daquelas versões adaptadas para o público juvenil de obras clássicas? Não há nada mais incapacitante para um leitor que isso. No caso de Moby Dick, algumas dessas versões trazem “Me chamo Ismael” como tradução para a primeira frase. É totalmente diferente do “Call me Ishmael“, do original.

Aqui, estabelece-se um pacto de ficcionalidade que me lembra as histórias de pescador, em que se suspende o real deliberadamente, mas decidimos entrar no estômago da baleia e na jornada de olhos fechados. Aquele a quem podemos chamar de Ismael (talvez não seja esse seu nome, e não importa) apresenta a busca pelo mar como forma de fugir da melancolia, mas, ao mesmo tempo, a põe em paralelo ao suicídio, o que antecipa os perigos que a jornada com o capitão Ahab, verdadeiro protagonista ao lado da baleia, o trará.

7. Bônus: O vendido

Pode ser difícil acreditar vindo de um negro, mas eu nunca roubei nada. Nunca soneguei impostos nem trapaceei no baralho. Nunca entrei no cinema sem pagar nem fiquei com o troco a mais dado por um caixa de farmácia indiferente às regras do mercantilismo e às expectativas do salário mínimo. Não assaltei uma casa. Não roubei nenhuma loja de bebidas. Nunca entre num ônibus ou num vagão de metrô lotado, sentei no lugar reservado para idosos, tirei meu pênis gigante da calça e me masturbei até gozar com um olhar pervertido, ainda que um pouco abatido. E, no entanto, aqui estou eu, nas cavernosas instalações da Suprema Corte dos Estados Unidos, com meu carro estacionado de maneira ilegal e de certo modo irônico na Constitution Avenue, as mãos algemadas atrás das costas, já tendo abandonado e dito adeusinho ao meu direito de permanecer calado, enquanto me mantenho sentado numa cadeira com um estofado grosso que, mais ou menos como este país, não é tão confortável quanto parece.?

Paul Beatty, O vendido

Em uma lista cheia de lugares comuns, esse porto seguro da mediocridade, coloco desta vez uma descoberta recente de leitura, feita graças a minha mulher, que me presenteou a pérola: o livro estonteante de Paul Beaty, O vendido. O autor negro americano começa com um verdadeiro coice, pois desloca o leitor de sua zona de conforto e nos apresenta uma ironia precisa e um humor preciso. As imagens que vai apresentando ao longo do parágrafo, introduzidas por elementos negativos, vão criando imagens à revelia do leitor, como são as imagens que se propagam na mente mesmo daqueles que se dizem não ser racistas, um dos públicos leitores de Beatty, claro. Assim, mais uma vez, o autor estabelece um contrato de leitura desde a primeira página, mostrando as ferraduras com as quais vai pisotear o tema, de uma forma que subverte o realismo chato de costumes de certa ficção americana (e brasileira contemporânea, diga-se de passagem). Se você não ficou aprisionado a este livro e não vai abrir uma aba neste momento para saber como adquiri-lo, nem sei o que dizer.

Qual seu começo favorito?

Se você curte começos incríveis, pode querer continuar fazendo a sua própria lista. Há várias, como a de 100 melhores frases de abertura, da American Book Review (uma de minhas listas preferidas). Mas acho que nossa lista de melhores começos vai se alterando ao longo de nossas vidas, como nós mesmos. Um começo que pode nos impressionar na juventude, como o de O senhor dos anéis, depois perde a graça. Coloque nos comentários os seus!

Imagem: Unsplash, Bantersnap

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