O peso do medo reconstruído

Há algumas semanas eu lancei uma promoção no site para sortear um exemplar de o pedo do medo 30 poemas em fúria entre pessoas que quisessem reescrever um dos poemas do livro, que tem por característica formal o apagamento proposital das marcas de versos e pontuação dos textos.

O poema que indiquei foi o primeiro do livro, arte poética. Quem ganhou o sorteio foi Thiago Pininga. Aqui, reproduzo as três versões enviadas. Além de Thiago, escreveram versões Artur Lins e Wagner Bezerra. Interessante ver como há certas marcas que se preservam em cada versão, como se, apesar do apagamento, o ritmo do poema se preservasse. O que eu queria provar com o livro era exatamente isso: queria provar minha crença no leitor, na sua capacidade de reconstruir cada poema que eu em vão tentava ‘apagar’. Seguem os poemas.


Arte Poética

Versão de Wagner Bezerra Pontes

Morto ventre de livros oróboro. Prateleiras, silêncio, pó… esse livro não é carne e sangue, é mais uma máscara que se arrasta. Já, nada há pra dizer? Nada! Esse livro mais medo, menos fúria, mais fuga de terminar. Devorador de umbigos ou de seguir cinza, ou de ser um dos jovens sérios de fernando monteiro, ou de ser raíz e tumba, ou de ser mais uma cria-espelho-neruda, ou de ser sensação roda-de-samba da lapa odisseia. Criar manuais de escombros, ser diplomático anêmico, diferente iconoclasta, moderninho ou ser só isso?! Odisseia, ó alcaguetes de plantão! Oh, ser pop cult no café-cinema-de-arte! Ó, poetas pós-românticos! Pós-simbolistas! Pós-concretistas! Pós-modernos! Oh, não ser nada?! Só uma palavra depois da outra. Uma depois da outra?! O poema após a morte do verso. Ó, maquiadores de dor inventada! Como estrangular a úlcera dessas letras? Como multiplicar meu caos-retina? Como implodir meu corpo, rua vazia? Como incendiar em mim o gabinete? Como desmembrar a alma dos edifícios mortificados? Como violar a úmida memória das crianças, do caderno cidade? Como açoitar a agonia das etnias vencidas? Como retirar o véu de silêncio das bocas dos trens lotados? Como carbonizar a vontade adormecida das escrivaninhas? Se sou só isso, se isso é só abismo, se isso é só odisseia… derreter enfim o arquipélago sodomizar as últimas esperanças da plateia, enfeitar as vestes da noite com as vísceras de platão?!


Versão de Artur Lins

morto ventre de livros

oróboro

prateleiras

silêncio

esse livro não é carne

e sangue

é mais uma máscara

que se arrasta já

nada há pra dizer

nada

esse livro

mais medo

menos fúria

mais fuga de terminar

devorador de umbigos

ou de seguir cinza

ou de ser um dos jovens sérios de fernando monteiro

ou de ser raíz e tumba

ou de ser mais uma cria-espelho-neruda

ou de ser sensação roda-de-samba da lapa

odisseia

criar manuais de escombros

ser diplomático

anêmico

diferente

iconoclasta

moderninho

ou ser só isso

odisseia

ó alcaguetes de plantão oh

ser pop cult no café-cinema-de-arte

ó poetas pós-românticos

pós-simbolistas

pós-concretistas

pós-modernos

oh não ser nada

só uma palavra

depois da outra

uma depois da outra

o poema após a morte do verso

ó maquiadores de dor inventada

como estrangular a úlcera dessas letras

como multiplicar meu caos-retina

como implodir meu corpo

rua vazia

como incendiar em mim o gabinete

como desmembrar a alma dos edifícios mortificados

como violar a úmida memória das crianças do caderno cidade

como açoitar a agonia das etnias vencidas

como retirar o véu de silêncio das bocas dos trens lotados

como carbonizar a vontade adormecida das escrivaninhas

se sou só isso

se isso é só abismo

se isso é só

odisseia

derreter enfim o arquipélago

sodomizar as últimas esperanças da plateia

enfeitar as vestes da noite com as vísceras de platão


Versão de Thiago Pininga

Morto ventre de livros

Oróboro, prateleiras, silêncio, pó

Esse livro não é carne e sangue, é mais

Uma máscara

que se arrasta

Já nada há pra dizer

nada

esse livro

mais

medo

menos

fúria

mais

fuga

De terminar

Devorador de umbigos

ou

De seguir cinza

ou

De ser um dos jovens sérios (de Fernando Monteiro)

ou

De ser raíz e tumba

ou

De ser mais uma cria-espelho-neruda

Ou de ser sensação roda-de-samba da lapa

Odisséia:

Criar manuais de escombros, ser diplomático,

Anêmico, diferente iconoclasta, moderninho,

Ou ser só isso:

Odisséia

Ó, alcaguetes de plantão!

Oh, ser pop cult no café-cinema-de-arte!

Ó, poetas pós-românticos, pós-simbolistas,

Pós-concretistas, pós-modernos!

Oh, não!

Ser nada, só uma palavra

Depois da outra

uma

Depois da outra

O poema após a morte do verso

Ó, maquiadores de dor inventada! como estrangular a úlcera dessas letras? como multiplicar meu caos-retina?como implodir meu corpo rua vazia?como incendiar em mim o gabinete? como desmembrar a alma dos edifícios mortificados?como violar a úmida memória das crianças do caderno cidade?como açoitar a agonia das etnias vencidas? como retirar o véu de silêncio das bocas dos trens lotados? como carbonizar a vontade adormecida das escrivaninhas? se sou só isso? se isso é só abismo?

se isso é… só…

Odisséia:

Derreter, enfim, o arquipélago, sodomizar

As últimas esperanças da platéia,

Enfeitar as vestes da noite,

Com as vísceras

de Platão

4 Comentários
  • Wagner Bezerra Pontes
    Postado às 01:35h, 05 março Responder

    Gostei do jogo e da reconstrução do poema! A visão e a capacidade de cada leitor reconstruir a partir de seu próprio mundo é fantástico.

    Parabéns ao Thiago!

    E obrigado ao Wellington de Melo, pela oportunidade na participação da reconstrução de seu poema.

    Abraço! =D

    • Wellington de Melo
      Postado às 07:02h, 05 março

      Eu é que agradeço, Wagner, pelas leituras de vocês e pelos poemas reescritos.

  • Thiago Pininga
    Postado às 22:07h, 04 março Responder

    Os estratos visuais ficaram bem interessantes.

    • Wellington de Melo
      Postado às 07:02h, 05 março

      Achei legal que cada um apresenta novas camadas de significados, novos matizes.

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