Crônicas de São João (última parte)

No dia seguinte à excursão ao Vale do Catimbau, decidimos ir ao Santuário de Nossa Senhora das Graças, depois da aldeia de Cimbres. Haviam-nos dito que era muito bonito, então não quisemos deixar de ir.

Eu já tive mais religiosidade, mas o cotidiano me embruteceu. Hoje a ideia de Deus para mim é diáfana e meus encontros com Ele tendem a ser cada vez mais internos, como aliás deveria ser o encontro com Deus. Eu acho que a construção que fazemos da divindade é permeada por nossas experiências, por nossa cultura. A viagem ao Santuário me fez comprovar essa teoria.

Para chegar lá é preciso primeiro atravessar a serra que rodeia Pesqueira. Há um novo santuário que foi construído, segundo dizem, por conta da dificuldade de atravessar a reserva Xucuru para chegar ao santuário original. Isso me fez refletir como a história é feita desses movimentos: para os que não conhecem ou não se aventuram a ir mais além, aquele é o santuário. Ao mesmo tempo, o santuário original é uma construção cultural feita por um monte de circunstâncias que foram se perdendo no tempo e se confundindo em uma mescla de misticismo e coincidências.

Fomos recebidos lá por um monte de meninos, que se dispuseram a nos guiar. Claro que aquilo era algo que faziam com frequência, a ponto de a história das meninas que viram a santa saltar de suas línguas como petardos teleguiados. Deveria encantar as pessoas com fé. Um menino começou a contar a história e outro continuou, porque sabia a segunda parte. Eles disputavam, como flanelinhas, quem nos seguiria. Eu fiquei atento a quem nos acompanhava, para saber quem recompensar depois, mas a presença de uns rapazes em motos quando chegamos, me fez entender que talvez nenhum deles recebesse nada, que havia ali, como em todos os lugares, a lei do mais forte, e aqueles rapazes provavelmente tomariam o dinheiro que dei a nossos guias. A crueldade existe mesmo no paraíso.

Fomos subindo as escadarias e ouvindo a história de como o lugar onde a santa apareceu na rocha era branco, nunca se molhava nem criava lodo. Ana ficou na metade do caminho com Aleph e eu continuei. Ia ouvindo tudo com meu coração descrente, percebendo que a beleza estava em como eles modificavam tudo pelo seu olhar simplório. Havia em minha atitude, vejo agora, uma soberba totalmente desnecessária e inútil. Um pátio natural era o pátio da ressureição, uma caverninha era onde Cristo foi enterrado, cada espaço da subida, um dos passos da paixão. Modificamos a paisagem com nosso olhar, com cultura. E não há em minha fala qualquer recriminação, apenas uma constatação. Quem era eu para dizer que aquilo era misticismo, invenção? Era real para todos eles. E mesmo que não fosse, que tivessem a plena consciência da ficcionalidade de suas narraitvas, era uma forma de sobreviver à completa carência de tudo que se sentia no oxigênio daquele lugar.

Ao chegar no alto do santuário, de onde brotava a água benta – assim eles disseram que era aquela água, que não podia ser vendida, vi o local onde apareceu a santa. Havia uma pequena inclinação na pedra e uma protuberância que explicavam porque, com o vento e a física, nunca se molharia aquela parte da pedra, evitando a criação de lodo e deixando-a, naturalmente, branca. Mas importava pouco minha racionalização. Era água benta, eles diziam. Eu via uma fonte de água na montanha com vista exuberante do Sertão. Pensei em Aleph e seu silêncio. Deveria estar brincando com a mãe perto do quarto passo de nosso Senhor, ignorando todo meu racionalismo, toda a minha explicação do porquê de aquela comunidade ter criado essa história em torno de uma santa e duas meninas há tanto tempo que a história que se preservava pelas bocas dos meninos ser talvez apenas uma repetição sem sentido para eles.Nada importava.

Enchi a garrafa e desci ao encontro de Aleph, benzi sua cabeça, dei-lhe um pouco da água. Deve ser assim com a fé: o desejo maior, movido pelo puro amor, de que a realidade se molde à nossa vontade, espelho da vontade de um deus que supostamente nos olha e protege. Beijei meu filho e desci do santuário olhando a vegetação ao redor, a fonte de água limpa que corria por baixo de uma ponte velha. Pensava que em pouco tempo voltaria meu cotidiano permeado por minha visão de concreto e vidro. Deus existia nele e em mim. São João do Carneirinho me estaria velando em algum lugar? Sorri e olhei pro sol quente daquela manhã, sem saber o que viria. Liberdade é acreditar nas mentiras que nos convêm.

 

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