Num sábado melancólico assiti a um desenho animado antigo. Tratava-se da série Silly Symphony, de Walt Disney. Entre os curtas, O flautista mágico. Ver esse filme me fez lembrar da condição do artista em nosso tempo, principalmente do artista que não está no mainstream, que não está entre os dez mais. Aquele artista que luta a cada dia para ganhar seu pão, sem agentes, sem produtores etc. e tal.

O argumento desse desenho animado é bem parecido com o do famoso conto folclórico europeu documentado pelos irmãos Grimm (Der Rattenfänger von Hameln, no original alemão), muito embora tenham sido tirados alguns elementos macabros sempre recuperados pelos Grimm nesses contos tradicionais. Por exemplo, enquanto no conto os ratinhos são mandados pro inferno afogados no rio Weser, no desenho o flautista dá um fim aos camundongos criando um queijo imaginário onde eles desaparecem. Bem Disney. Tim Burton é bem irmãos Grimm, mas nem ele escapou da higiene do pessoal de Orlando. Voltemos ao flautista.

Na história o povoado de Hamelin estava infestado de ratos. Diante dos pedidos da população por uma solução para o problema, vemos o que parece ser o governante do lugar embasbacado, sem atitude. Chega um homem, com vestes que lembram as de bobo da corte e se oferece para salvar a cidade. A partir daí, todo mundo sabe: ele toca sua flauta e leva os males para longe (não afogados no rio e tudo mais). Quando volta à cidade para cobrar seu serviço, dá de cara com os portões fechados e com o governante e seu povo, que se recusam a pagar.

No conto tradicional, a justificativa foi não mostrar as cabeças dos ratos – ok, macabro como sempre. Já no desenho, a ganância fica mais escancarada: sorrindo, o governante diz que não dará o que ele pediu, mas lança uma moeda de seu saco de ouro. O flautista resolve se vingar e, dizendo que as crianças não mereciam viver naquela cidade gananciosa, toca mais uma vez sua flauta e leva as crianças para uma caverna onde podem-se ver doces e brinquedos. Mais uma vez, a Disney dá sua maquiada: no conto original as crianças são levadas para uma caverna. Ponto.

O artista que já recebeu o famigerado convite de participar de um evento “para divulgar o trabalho” deve achar familiar o conto do flautista. Antes de assumir um cargo público na  área da cultura havia recusado alguns convites infames desse tipo, menos pelo dinheiro em si do que pela falta de respeito. Lembro de ouvir algumas pessoas dizerem que isso “era normal”, mas nunca aceitei e continuo sem aceitar que se convide um artista na “brodagem”, modelo que só deve funcionar entre verdadeiros brothers, ou seja, artistas que fazem escambo de trabalhos uns com os outros.

Essa lógica não se aplica nem nunca se aplicará a instituições que contratam artistas. É aquilo do respeito de que falava. O mesmo respeito que se tem com quem cuida de seu filho, lhe serve a comida em um restaurante ou faz a sua barba com uma navalha. Em qualquer dessas situações, algo de vital está em jogo. E não seria a arte algo essencial para a preservação da civilização humana? Se não se tem essa compreensão, não se deveria trabalhar com cultura.

Mas no meio da política essa lógica não funciona e pessoas que nunca deveriam ocupar certos postos proliferam como as ratazanas de Hamelin, com a diferença que são mais difíceis de afogar em um rio. É o caso do atual ministro da cultura, Roberto Freire, uma ratazana, ou melhor, camundongo, que se apequena a cada fala pública, cada oportunidade em que expõe sua natureza de roedor; não consegue esconder a penugem eriçada de esgoto, as patinhas imundas, as presas agigantadas com as quais se aferra a essa nau infestada que se transformou o governo provisório e golpista que ele insiste em defender. Minúsculo, o ministro-catita sequer vale uma nota do flautista.

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