O neutro “lo” e o problema da classificação

Nosso objetivo será levantar discussões que inquietem os professores e professoras de língua espanhola e que incentivem o aprofundamento do estudo da forma neutra “lo”. Estamos seguros de que os pontos introduzidos neste trabalho abrirão caminho para futuras análises dos profissionais, bem como darão uma visão mais ampla sobre este tema, frequentemente tratado com uma harmonia que não lhe é necessariamente característica pela maioria dos livros didáticos de espanhol distribuídos no Brasil.

Trataremos neste trabalho da forma neutra que normalmente nos livros didáticos de espanhol como língua estrangeira distribuídos no Brasil se classifica como artigo neutro (artículo neutro), de modo que o neutro acusativo, ou seja, aquele que desempenha a função pronominal de objeto direto, inicialmente não forma parte de nosso corpus. Empregaremos, por isso mesmo, o termo forma neutra quando nos referirmos ao “artículo”, uma vez que durante a nossa análise veremos que não raras vezes esta última denominação não será a mais adequada.

CONCEITO DE ARTIGO

É importante, antes de começar a discussão sobre os problemas encontrados ao se tentar classificar a forma neutra “lo” como artigo , definir que conceito adotamos para tratar desta categoria gramatical, uma vez que há diferentes teorias que norteiam este controverso tema.

Tradicionalmente o artigo se caracteriza como um elemento oracional que mantém uma relação adjetiva com o substantivo. Sua função é, segundo Alcina Franch e Blecua:

“circunscribir la extensión en que ha de tomarse el nombre al que se antepone, haciendo con que éste, en vez de abarcar toda clase de objetos a que es aplicable, exprese tan sólo aquel objeto determinado ya y conocido del que habla y del que escucha. Además, el artículo se une a otras partes de la oración que se usan con valor de sustantivos, ora el mismo adjetivo […] ora otras palabras” (1989:549-550)

Neste ponto cabe destacar da distinção entre os estudiosos que assumem a existência de artigos definidos e indefinidos, como Lapesa (1961) ou a própria Real Academia Española (RAE)[1], e os que consideram como artigos apenas os definidos, classificando os indefinidos como adjetivos ou pronomes (SARMIENTO & SÁNCHEZ, 1995)[2].  Alarcos vai mais além e considera que o artigo, além de classificar o objeto denotado, atribui a esse objeto um grau de especificação que o aproxima a um substantivo próprio (1999:84).

Ainda segundo a visão tradicional, o artigo é uma “palavra”[3], ou seja, uma unidade que se escreve separada do substantivo e do adjetivo. Já Álvarez Martínez o considera um morfema nominal, semelhante ao número e ao gênero (1989:63-99)[4], algo que Alcina Franch e Blecua também admitem, quando se referem aos artigos como “morfemas libres” (1989:549). Esses autores consideram que o artigo pode vir acompanhado de um nome (substantivo ou adjetivo), de um advérbio ou uma proposição. Outros tipos de unidades também podem ser utilizadas com artigo, mas nestes casos assumem o valor denominativo do substantivo (el pero, el sí, el pagaré).

SERIA O NEUTRO REALMENTE UM “ARTIGO”?

Esta é a questão central de nossa análise. Se tomarmos com rigor o que foi dito anteriormente sobre o artigo, nos parece difícil em alguns momentos classificar a forma neutra “lo” como tal. Sarmiento e Sánchez (1995) admitem que dificilmente se pode classificar a forma neutra como um artigo, como se costuma fazer tradicionalmente –  e como é propagado diversos livros didáticos. Concordamos com esses autores pois, na verdade, a forma neutra possui diferentes usos e funções, algumas vezes contraditórios com o conceito que se tem de artigo.

Para muitos gramáticos a forma neutra desempenha uma função substantivadora diante de adjetivos[5].  Nestes casos o neutro lhes proporciona um valor abstrato (GÓMEZ TORREGO, 2005:73). Há, no entanto, construções nas quais a forma neutra possui muito mais um valor intensificador, como ocorre em “Lo bella que es Juliana”. É forçoso entender que se trata aqui de uma substantivação, uma vez que o adjetivo que acompanha o neutro admite gradação (Lo muy bella que quedó Juliana, Lo bellísima que quedó Juliana)[6]. Alcina Franch e Blecua advertem que o processo de substantivação se dá em todo o enunciado e não só sobre o adjetivo (1989:571). A gradação do adjetivo, que pode receber um advérbio como adjacente nominal, ou inclusive assumir formas superlativas sintéticas, seria assim justificada.

Sabemos que esse tipo de gradação é característico dos adjetivos e também de alguns advérbios, o que nos leva a entender que nestas construções o que há realmente são adjetivos e não ocorreu uma substantivação formal; tampouco há substantivação funcional, pois o elemento que acompanha o neutro mantém a função de atributo[7]. O valor de atualizador, característico do artigo, também se perde.

Bosque, por otro lado, se considera que em construções como “Lo cortés no quita lo valiente”, os termos que acompanham o neutro são adjetivos (1991:190)[8]. Neste ponto o próprio Bosque nos ajuda no argumento contra a classificação do neutro como artigo: ao fazer o contraste entre os pronomes demonstrativos e o artigo, considera que tanto os primeiros como o segundo “pueden agruparse con un nombre sustantivo o con la palabra que haga sus veces” (1991:213), posição diferente da de Alcina Franch e Blecua (1989), antes mencionada, segundo a qual acompanham também “adjetivos, adverbios o una proposición”. Bosque mais adiante afirma que uma propriedade “quase privativa do neutro” é a de

“agruparse con un adjetivo en su forma singular masculina, o con un adjetivo en singular, si el adjetivo es invariable genéricamente, o incluso en algunas construcciones con adjetivos de cualquier género y número: lo nuevo; lo más difícil; lo extraños que parecen; lo graciosas que son. (BOSQUE, 1991:215)

Aproxima, além disto, o “artículo neutro” aos demonstrativos por sua capacidade de acompanhar cláusulas de relativo e frases preposicionais (lo que dijiste; lo de siempre). O que se tenta aqui é atribuir à forma neutra um valor dêitico que supostamente retoma a origem latina do neutro no demonstrativo llud.

Já para Álvarez Martínez, o neutro “lo” é genérico e carece de valor fórico (1989:66), o que o afasta dos demonstrativos, claramente anafóricos ou catafóricos. Daí que o conceito de artigo como “demonstrativo debilitado” tampouco possa ser aplicado ao neutro. Diga-se de passagem que Álvarez Martínez não concorda com a teoria do artigo como um demonstrativo debilitado, uma vez que defende, como mencionamento anteriormente, o artigo como “un morfema del que dispone el sustantivo para expresar la determinación” (1989:66).

CONCLUSÕES

Notamos então que há vários problemas para que identifiquemos a forma neutra como um elemento de comportamento homogêneo e facilmente classificável entre os artigos. Parece ser que dita classificação se remete muito mais a uma tradição de estudos baseados em conceitos gramaticais gregos (el, la e lo como correlações de ?, ? e  tó [ÁLVAREZ MARTÍNEZ, 1986:27])[9]. Por outro lado, um dos  aspectos em que se fundamentam os que defendem que a forma neutra não se trata de um artigo é também diacrônico: considerar que na língua espanhola perdeu-se o gênero neutro do latim (MENÉNDEZ PIDAL, 1992:§77). A partir daqui começamos a contrastar as diferentes visões sobre o artigo.

  • Se o artigo mantém uma relação adjetiva com o nome a que se refere, supostamente deveria sempre acompanhar a um “sustantivo o con la palabra que haga sus veces”.
  • Se por outro lado consideramos, como acreditam Alcina Franch e Blecua, que o artigo segue outro tipo de palavra ou elemento oracional (como adjetivos, advérbios ou proposições), não há em todos os casos a substantivação, como se eventualmente se propõe.
  • Se não há substantivação (considerando os tipos de sustantivação propostos por Alcina Franch e Blecua) do elemento que acompanha o neutro, seria o próprio neutro o núcleo do sintagma, transformando-se desta forma em um pronome, como podemos verificar em Bosque:

En el análisis del neutro lo que proponemos en Bosque y Moreno (1988) […] el adjetivo bueno en lo bueno representa el elemento que restringe el rango de la variable que corresponde a lo, núcleo del sintagma […] (1991:183)

  • Nos casos em que “lo” tem valor de intensificador, não há por que considerar qualquer valor dêitico ou atualizador, o que mais uma vez nos afasta da concepção de neutro como artigo.

Nossa conclusão não poderia ser outra que propor critérios para que o professor ou profesora assuma posições sobre esse  complexo tema, já que dificilmente chegariamos a uma resposta definitiva paras as questões aqui levantadas, uma vez que representam apenas um recorte no universo de possibilidades de usos do neutro “lo”. De acordo com a posição teórica que o professor o a professora consideram a mais adequada, poderá chegar a diferentes conclusões, divergentes até das que tentamos defender neste breve trabalho.

Esses critérios que devemos assumir ao tratar da forma neutra dependem, a nosso ver,  de nossa visão teórica sobre três pontos:

  • o  conceito de artigo: acompanha unicamente substantivo ou pode acompanhar outra classe de palavra?
  • a compreensão dos processos de substantivação: Consegue-se identificar os diferentes tipos de substantivação? Se o neutro acompanhar outro tipo de palavra, seria o neutro o núcleo do sintagma nominal como acredita Bosque?
  • o artigo é uma palabra ou um morfema nominal? De acordo com a posição assumida, e considerando a opinião com respeito ao tópico b, o neutro sim poderia ser uma palavra, já formas como el e la, não. Desta forma, podemos ainda insistir que o neutro é um artigo?

A compreensão da complexidade do tema é esencial para que os professores e professoras de espanhol se posicionem sobre a forma neutra, terminologia que acreditamos ter provado ser preferível a artículo neutro. Baseados em uma corrente teórica coerente, seja ancorados na tradição, seja levando em conta as mais recentes teorias, os professores e professoras devem oferecer a seus alunos a verdade e não recorrer à simplificações que freqüentemente vemos multiplicar-se nos livros didáticos. É também importante para que o profissional possa decidir que recorte pretente fazer no tema para apresentá-lo a seus grupos. Por exemplo, talvez seja mais interessante e produtivo, ao abordar esse tema, concentrar-se nas diferenças que há entre a forma neutra “lo” e o seu correspondente de acusativo masculino (notadamente um pronome).

Este trabalho representa apenas um pontapé inicial para que possamos ter uma visão mais crítica diante do que nos propõe certos livros didáticos, não só com respeito à forma neutra, mas também com inúmeros temas que são analisados de forma superficial quando não equivocada. Os livros didáticos devem ser nossos companheiros no dia-a-dia de sala de aula, mas devemos ser nós, professores e professoras de língua espanhola, críticos e capacitados, os que determinam os caminhos que devemos seguir nesta viagem que realizamos com os nossos alunos pelo maravilhoso mundo da língua espanhola, como nos lembra nosso querido Antonio Machado: caminante, no hay camino, el camino se hace al andar.

REFERENCIAS

ALARCOS LLORACH, Emilio Alarcos. Gramática de la lengua española. Madrid: Espasa-Calpe, 1999.

Alcina FRANCH, Juan; BLECUA, José Manuel. Gramática española. Barcelona: Editorial Ariel, 1989.

ALONSO, A. Estilística y gramática del artículo en español. In: Estudios lingüísticos, Temas españoles.  Madrid: Gredos, 1967.

ÁLVAREZ MARTÍNEZ, M. Ángeles Álvarez. El artículo como entidad funcional en el español de hoy. Madrid: Gredos, 1986.

_______________. El pronombre. Madrid: Arco/Libros, 1989.

Bosque Muñoz, Ignacio. Las categorías gramaticales. Madrid: Editorial Síntesis, 1991.

Gómez TORREGO, L. Gramática didáctica del español. Madrid: Ediciones SM, 2002.

Hernanz, M. Luisa; BRUCART, José M. La sintaxis. Barcelona: Editorial Crítica, 1987.

LEONETTI JUNGL, Manuel Leonetti. El artículo y la referencia. Madrid: Taurus Universitaria, 1992.

Lapesa, Rafael. Del demostrativo al artículo. México D.F.: Colegio de México, 1961.

Menéndez PIDAL, R. Manual de gramática histórica española. Madrid: Espasa-Calpe, 1992.

______________. Orígenes del español – estado lingüístico de la Península Ibérica hasta el siglo XI. Tomo VIII. Madrid: Espasa-Calpe, 1999.

REAL ACADEMIA ESPAÑOLA DE LA LENGUA. Esbozo de una nueva gramática de la lengua española. Madrid: Espasa-Calpe, 1991.

SARMIENTO, Ramón. SÁNCHEZ, Aquilino. Gramática básica del español. Madrid: SGEL, 1995.

SILVA, M. Cecíclia Pérez de Souza; KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Lingüística aplicada ao português: morfologia. 3 ed. São Paulo: Cortez, 1997.


[1] Embora a definição apresentada acima envolva unicamente os artigos definidos, mais adiante o Esbozo apresenta o artículo indeterminado, o artículo genérico, indefinido o indeterminado, que “designa un objeto no consabido de aquel a quien se dirige la palabra”.

[2] Acreditamos que muitos fatores corroboram essa teoria, como: a) a tonicidade de que carecem os definidos, b) a diferente origen etimológica (os demonstrativos latinos ?lle, ?lla, ?llud para os definidos e o numeral ?nus para os indefinidos), c) a possibilidade de que uno funcione como núcleo de um sintagma nominal, coisa que não ocorre com el, etc. Um estudo mais aprofundado que reflete a nossa posição pode ser encontrado em Álvarez Martínez (1989).

[3] Masip, por exemplo, define os artículos como “palabras que limitan y precisan el significado del nombre” (1999:151).

[4] Esta discussão por si só já nos tomaria todo o trabalho, de modo que nos deteremos apenas em alguns detalhes pertinentes. Considerar o artigo como um morfema nos recorda a noção de formas dependentes apresentada por Mattoso Câmara, embora Silva & Koch deixem claro que o conceito de formas livres, presas e dependentes não deve ser confundido com o de morfema. Por outro lado, as mesmas autoras, ao classificar os morfemas gramaticais definem as conjunções, preposições e pronomes relativos como morfemas relacionais (1997:26). O artigo não é uma forma presa, já que admite intercalação de outras formas livres entre ela e o nome que determina.  Com efeito, o artículo – considerando a teoria que o define como as formas el, la, lo – é uma forma átona, e por isso mesmo dependente, uma vez que não pode ser empregada de maneira isolada de uma forma suficiente na língua. Para mayores detalhes, consultar Álvarez Martínez (1986, 1989).

[5] Alguns autores equivocadamente falam de substantivação de advérbios com o neutro, pero Álvarez Martínez (1989:73) considera que o neutro apenas acompanha adjetivos. Em  construções enfáticas como “Lo lejos que queda tu casa”, o neutro na realidade acompanha a oração oração de relativo, enquanto que o advérbio remete ao verbo de dita oração. Esta relação fica explícita se percebemos o comportamento do adjetivo em construções semelhantes (Lo listas que son tus primas), que admitem variação de gênero e número. A sustantivação de advérbios ocorre pois somente com artigos masculinos (el ayer, el sí, el no).

[6] Se bem que o substantivo e o adjetivo naturalmente geram problemas de separação e categorização, há algunas diferentas bem estabelecidas, de natureza a) sintática – os substantivos desempenham funções básicas, como sujeito ou complemento direto,  fato que não acontece com os adjetivos (BOSQUE, 1991:106);   b) morfológica: o adjetivo admite, como mencionamos, intensificação, um tipo de gradação diferente do diminutivo e do aumentativo.

[7] Sobre  os tipos de substantivação, consultar Alcina Franch e Blecua (1989).

[8] Embora a RAE continue tratando o neutro como “artigo”, esta é uma informação importante para a nossa análise, pois freqüentemente são apresentados exemplos como esta para explicar processos de substantivação. Entretanto, temos que admitir que neste caso poderia tratar-se de uma substantivação funcional, já que “cortés” e “valiente” aparecem como sujeito e complemento direto, respectivamente.

[9] Acreditamos que propor uma linha direta do grego ao espanhol é pouco aceitável, principalmente porque desta forma se ignora o latim, que carecia, como já vimos, de artigo.

Sem comentários

Comente