Por Ronaldo Cagiano

Eu creio que os labirintos são símbolos evidentes da perplexidade

Jorge Luís Borges

 

Não é sempre que a literatura é capaz de proporcionar um soco no estômago do leitor ou um estranhamento na crítica, como “O jogo da amarelinha”, de Cortázar; ou a trilogia americana – “Paralelo 42”, “1919” e “O grande capital” – de um John dos Passos, para citar apenas dois exemplos marcantes na literatura universal.

Na ficção brasileira, por exemplo, podemos situar “Avalovara”, de Osman Lins; “Zero”, de Ignácio de Loyola Brandão; “Eles eram muitos cavalos”, de Luiz Ruffato; “Investigação sobre Ariel”, de Sílvio Fiorani; e, mais recentemente, “As visitas que hoje estamos”, de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira como exemplos significativos desse espírito renovador. São obras impactantes, tanto pela natureza formal quanto pelos recursos narrativos híbridos, em que os autores chacoalham o gênero, implodem os mecanismos de construções e desafiam a linearidade e o enredo, para instaurarem um “tertium genus”, afrontando o que até então a visão canônica e burguesa da literatura assentava como distinção entre as vertentes criativas.

Felizmente, para o arejamento do requentado cenário da produção literária brasileira, surgem, vezenquando, obras desse naipe, capazes de instaurar uma agudíssima provocação, tal o escalonamento de idéias e valores estéticos que introduzem. É o caso da tensa e densa narrativa de “Estrangeiro no labirinto” (Ed. Confraria do Vento, Rio, 2013, 356 pg), do pernambucano Wellington de Melo, obra finalista do prêmio Portugal Telecom 2014.

A obra, abstraída a tentação classificatória, impõe-se como autêntica e robusta arquitetura romanesca, tanto pelo caudaloso objeto ficcional quanto pelo grande efeito causado, inclusive, pela pretendida negação do gênero. E ainda pela linguagem, pelo viés caleidoscópico, para a qual concorre uma multiplicidade de narradores, uma teia de temas e uma pluralidade de situações. Desse processo polifônico de construção, em que o domínio narrativo do autor não deixa o texto fluir a esmo ou resvalar-se por truques e peripécias cansativos os gorduras de estilo, o livro desencadeia uma vigorosa e bem dosada experimentação.

Reconheça-se no próprio título a razão dessa opção por uma atmosfera narrativa enviesada, por essa deambulação pelos universos múltiplos da linguagem, explorando toda sua força comunicativa, utilizando-se de toda a carga semântica e alegórica que uma história – ou várias, e seus signos – pode proporcionar. Wellington assenta seu projeto na possibilidade de mirar a própria complexidade existencial – a vida como labirinto e desafio – e de enfrentar a variedade temática, formal e técnica para descrever essa instabilidade do ser diante do inominado, a sua vertigem diante do desconhecido e os símbolos universais de sua angústia diante dos absurdos dos nossos percursos. Daí a inflexão surrealista desse “romance” que extrapola todas as fronteiras, que na quarta capa do livro já adverte para sua natureza hipnotizadora ou escravizante, reconhecendo que seu cerne abismam “vozes anônimas que tentam explicar a natureza de um livro que supostamente aprisiona seus leitores, usando conceitos de física quântica, da psicanálise e do ocultismo”.

“Estrangeiro no labirinto” – projeto ousado de um autor talentoso, criativo e versátil – cuja urdidura vai des(a)fiando o fio de Ariadne no inconsciente do leitor, intercalando fluxos narrativos tão distintos, dispara um pout porri de vozes, olhares, histórias, atmosferas, movimentos e outros vetores constitutivas e/ou demolidoras dos próprios significados. Uma alegoria sobre o caos que paira sobre a própria contemporaneidade. Tudo amalgamado sob uma perspectiva plástica e mística, como enunciado em cada capítulo que, sob a forma de um portal que se abre com as cartas de tarô, em que os vários cronistas, numa expansão onírica e num jogo de espelhos, deslindam seus pensamentos ou descrevem uma situação ou trama, cujo efeito se assemelha a palimpsestos que se descobrem, com toda sua potência mitológica e borgiana.

Wellington de Mello é uma voz que se ergue e se diferencia em meio ao cipoal das contradições e obviedades que marcam a ficção contemporânea brasileira, impondo-se por meio de uma proposta radical, pelo rigoroso senso estético, por uma visão crítico-filosófica e na esteira da alta voltagem de uma prosa singular e instigante.

Resenha publicada no Diário da Manhã, dia 21 de fev. 2015

Link original: http://impresso.dm.com.br/edicao/20150221/pagina/24

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