O stalker é um estrangeirismo que, em inglês, significa “perseguidor”. Embora mais antigo, o termo ganhou fama na cultura digital. É aquele tipo que importuna obsessivamente uma pessoa, acossando-a em todas as situações. De modo que o perseguidor pode até, em algumas situações, chegar a ser agressivo e ser necessária uma atitude mais enérgica ou mesmo medidas judiciais para afastá-lo de seu objeto de desejo.

Por isso, o conceito não parece nada positivo, o que pode levar os leitores a questionar o título deste artigo. Estaria defendendo um aspecto sombrio ou pervertido do trabalho do escritor?  Que todos temos lados sombrios, não é novidade. Mas o que defenderei aqui é que essa perseguição do tema, esse cercar seu objeto por todos os lados de forma obsessiva é parte da natureza do ato criativo.

O olhar cria o objeto

O linguista e filósofo suíço Ferdinand Saussure dizia que o objeto não existe previamente ao ponto de vista. Ou seja, “é o ponto de vista que cria o objeto”. A física quântica confirma esse conceito linguístico. Um objeto quântico, que é algo imponderável, sem massa, sem movimento, sem tempo, quando entra no campo de pensamento de um observador passa a existir. Com isso, perde as características ondulatórias, ganha massa e se converte em partícula. É o que os físicos chamam de colapso da função de onda. Aristóteles chamava isso de poiesis?

A literatura nos permite construir mundos, trazer à luz o que poucos segundos antes simplesmente não existia. A partir de seu olhar, escritores e escritoras conseguem dar aos objetos e temas que observam uma nova natureza. Já os olhos dos leitores redescobrem esses temas o objetos como novas entidades, nem sempre tais como concebidas pelos criadores. O olhar atento é, dessa forma, também um ato criador, na medida em que as escolhas iniciais. O ponto de partida do observador, define caminhos a serem seguidos.

O stalker criativo

Dito isso, esclarecemos a dúvida do começo do artigo: ao falar que todo autor é um stalker, ressaltamos um aspecto desse tipo nefasto, ou seja, sua obsessão pelo objeto de desejo. Devemos tentar esgotar as possibilidades em torno de um objeto. Não para conceder-lhe verossimilhança ou para tapar todos os buracos que uma trama possa ter. Não é disso que tratamos aqui: é da busca de algo que poderíamos chamar de transe criativo, a partir do qual não seria o resultado da busca que interessaria, mas o processo mesmo de buscar, a jornada da pesquisa que engendra epifanias.

Dessa forma, ao pesquisar um tema ou objeto de interesse — pelo que você está obcecado agora? — é uma oportunidade de exercitar a criação. Navegar sem destino, para, de repente, fixar-se em determinado tópico e, em seguida, mergulhar mais profundamente neste tópico, perder-se no hipertexto, para reencontrar-se mais tarde — ou nem isso — em outros caminhos da criação, metamorfosear o objeto, moldá-lo segundo nosso interesse. Eis um dos pontos mais gostosos do processo de criação.

Exercício criativo

Em meu romance Felicidadeo protagonista Ademir, em algum momento, diz que os escritores não passam de ladrões. Não é nenhuma novidade e não é nenhuma mentira, concorda? Roubamos sensações, emoções, histórias, gestos, maneirismos, memórias. Pilhamos tudo o que nos interessa, sem qualquer pudor, sem qualquer culpa. Não respeitamos a propriedade, a privacidade nem a realidade. Criamos e recriamos segundo nos convenha, e, ao final, o produto é outra coisa: sequer podemos dizer que o roubado é o que temos conosco.

Por fim, proponhamos um exercício: tente stalkear uma pessoa que conhece, buscando, em todas as suas redes, fotos, postagens, informações que pudessem lhe inspirar ao menos um parágrafo, uma estrofe de um poema. Não se preocupe em retratar ou descrever a realidade. Importará a luz peculiar sobre um objeto numa foto do Instagram. Ou o sorriso de alguém, numa foto de família, que lhe chama a atenção — o que estaria pensando aquela pessoa, o que lhe aconteceu antes e depois do sorriso, de quem sorri? Essa pessoa não é a pessoa da foto, é apenas um objeto quântico que se transforma em um objeto de criação a partir de seu olhar.

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6 Comentários
  • Andréia Florêncio de Figueiredo
    Postado às 21:08h, 30 julho Responder

    É simplesmente maravilhoso! Eu nunca havia me atentado para o grande trunfo do stalker. Quando nos bate o branco e o não saber bem como construir um personagem dentro de um determinado tom muitas das vezes esquecemos de olhar ao nosso redor com uma certa mirada distinta. Esse exercício fez despertar uma certa sensibilidade atenção aos detalhes do outro.

    • Wellington de Melo
      Postado às 20:36h, 01 agosto

      Legal, não é? Como disse, somos todos um pouco bisbilhoteiros. Vamos em frente!

  • Maria Anna Martins
    Postado às 16:14h, 28 julho Responder

    Eu amei a aula sobre esse tema na Fafire. Foi muito interessantes fazer a tarefa sobre essa perspectiva, O mais interessante foi perceber que já fazíamos isso, mas não de forma tão clara quanto ficou após a sua aula professor. Abriu nossos olhos para possibilidades.

    Abraços.

    • Wellington de Melo
      Postado às 20:34h, 01 agosto

      Que ótimo. A maioria das ideias estão à nossa vista e não percebemos, não é?

  • Rômulo César Lapenda Rodrigues de Melo
    Postado às 13:14h, 24 julho Responder

    Curiosa a expressão stalker. Roubei muito até hoje então rs. Mas são assaltos para matar minha fome de arte, crimes famélicos.
    Estarei perdoado. O exercício acima proposto pode se tornar o começo de um personagem. Assim acontece, quando vemos nas ruas pessoas interessantes com frases e gestos diferentes. Elas habitam nossas ideias e desaguam no papel. Quando percebemos, ganham nome, aspecto físico e psicológico. Essa a nossa atividade e nosso prazer. A nossa obsessão positiva;

    bom artigo. abraço

    • Wellington de Melo
      Postado às 20:35h, 01 agosto

      Muito obrigado, Rômulo. Gosto sempre de tê-lo como leitor!

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