No começo da Odisseia, Telêmaco incomoda-se com a presença no lar paterno dos inúmeros pretendentes que rodeiam sua mãe Penélope. Por isso, decide partir em busca de Ulisses para trazer de volta a “ordem” perdida. Esses primeiros cantos do poema recebem o nome de “telemaquia”, por motivos óbvios. Eles representam a jornada do filho em busca do pai para, mais adiante, ajudá-lo no retorno à casa. Por outro lado, esse retorno também tem um nome: nostos. Trata-se de um tema de grande importância na literatura grega, e representa o heroísmo daqueles que, após anos de batalhas, conseguiam retornar ao lar.

Era 18 de dezembro de 2016 e havia ido a uma conversa entre o cineasta Kleber Mendonça Filho e o escritor José Luiz Passos na Fundação Joaquim Nabuco. Os dois conversariam sobre “Texto, contexto e ação: um debate entre cinema e literatura”. Aquarius havia sido lançado em maio daquele ano e em uma cena, exibia-se o livro O sonâmbulo amador, de Passos. Essa referência atiçou na época a crítica e chamou a atenção para a relação entre cinema e literatura de uma forma curiosa. É mais comum que as narrativas nasçam na literatura e sejam adaptadas para o cinema. Não lembro de muitos casos em que uma obra cinematográfica faz referência a uma obra literária da qual não foi adaptada. Quem lembrar, pode colocar nos comentários.

Memória e lançamentos

O encontro entre Kleber e José Luiz aconteceu precisamente 3 anos depois do lançamento de meu livro Estrangeiro no labirinto, que aconteceu no Centro Cultural dos Correios, no dia 18 de dezembro de 2013. Estava com Samarone Lima, Bernardo Almeida e Plácido Villanova, que também lançavam seus livros pela Confraria do Vento.

Lembro que uma das pessoas levantou-se na hora das perguntas, depois da fala inicial da editora Karla Melo. Questionava como um livro como aquele (no caso, o meu) poderia ter saído de uma editora séria. Era um livro cheio de erros de revisão (na página X não havia uma vírgula, disse algo assim), mal-escrito. Em Sorbonne, onde havia estudado, algo assim era inadmissível. Sidney Rocha interveio e perguntou. “Em Sorbonne haviam lido Guimarães Rosa?” A conversa meio que acabou ali. A pessoa veio à fila de autógrafos e não lembro bem o que ela disse. No ano seguinte, meu romance de estreia foi semi-finalista do Prêmio Portugal Telecom. Mas isso não interessa para o tema deste texto.

 

O caçador de mariposas

Quatro meses antes, no dia 7 de agosto de 2013, eu havia lançado outro livro, O caçador de mariposas. O evento aconteceu n’A casa do cachorro preto, em Olinda, e nele eu fiz uma leitura integral do poema, em duo com a poeta e amiga Cida Pedrosa. Lamento muito não ter registros em vídeo dessa leitura, mas foi um momento muito emocionante.

Era a primeira edição artesanal da Mariposa Cartonera. Trata-se de projeto artístico-editorial que encamparia nos próximos anos, publicando autores contemporâneos ao estilo do movimento cartonero, nascido na Argentina em 2003. O livro ganhou mais de 15 edições, todas de 50 exemplares numerados, com capas únicas pintadas `à mão. Uma das edições foi feita por catadoras de garanhuns, outras por coletivos de outros estados do país. O livro foi traduzido para o francês e publicado pela Cosette Cartonera, de Clermont-Ferrand, França. Lá, tem tido uma excelente recepção e segue sendo lido. Ainda estou retornando para casa, para o centro deste texto. Paciência, chegarei.

 

Telemaquia e a sombra do pai

Em algum momento de sua fala, José Luiz Passos mencionou a prevalência do tema do pai no romance brasileiro. Não lembro dos argumentos ou de exemplos. Mas aquela fala trouxe uma epifania sobre meu próprio trabalho em curso e sobre os rumos do que, anos depois, seria minha pesquisa de doutorado. Como, a partir da segunda metade do século XX, o tema do pai no romance latino-americano ajuda-nos a compreender o paradigma do patriarcado que molda as diversas instâncias de nossa sociedade? Como esse tema surge, a partir das vivências pessoais em minha obra, mas reverbera na macroestrutura mesma da vida social brasileira?

Em 2016, faltava um ano ainda para a publicação de meu segundo romance, Felicidade (2017, Patuá). Nele, retomo o tema da paternidade, e faço um paralelo ao discutir o patriarcado e seu paradigma de dominação. Para isso, parto de temas como a especulação imobiliária; a apropriação dos espaços públicos e da vida privada; a soberba que a elite artística e intelectual exercita e que a impede de dialogar com uma parte mais ampla da sociedade. Discuto como nós da esquerda esquecemos em parte essa linguagem e tecnologia para comunicar-nos de igual para igual com o outro, sem nos fecharmos em nossos códigos. Felicidade é um romance que antecipa a cegueira que nos acometeria uma ano depois, quando o inimaginável aconteceu, porque não soubemos chegar a parte dos 54 milhões que elegeriam o horror como solução.

 

“Aqui não é Comala”

Felicidade fecha o que venho chamando desde 2013 de “A Trilogia do Pai”, junto com Estrangeiro no labirinto e O caçador de mariposas. A estrutura de capítulos/partes dos três livros revela a unidade. Os nomes remetem às sefirá, ou emanações da divindade, presentes na Árvore da Vida da cabala. Parti de uma estrutura simbólica que envolve uma cosmogonia impregnada das ideias do patriarcado, como a tradição judaico-cristã (embora haja controvérsias sobre essa prevalência, mas não falarei disso aqui), para por em discussão esse paradigma patriarcal. Um paradigma que reverbera em nossos ossos e em nossa carne. Ter assistido àquela palestra e ter ouvido essa fala do José Luiz me fez perceber como o que eu escrevia ali dialogava com uma tradição mais profunda, para além dos códigos simbólicos e dos labirintos que eu estava inventando.

No entanto, eu só me daria conta de que essa discussão também se refletiria em minha pesquisa acadêmica três anos depois. Interessante como o número três me segue. Em 2019, mudei totalmente o rumo do projeto de pesquisa com o qual fui aprovado no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco. Decidi analisar os temas do nostos e da telemaquia no romance latino-americano a partir da segunda metade do século XX. Pedro Páramo (1955), de Juan Rulfo, é meu ponto de partida para perceber como a jornada da busca ao pai e o retorno para casa nessa literatura. Diferente da abordagem homérica de integração ao paradigma e rito de passagem para a vida adulta, os temas representam o conflito e a dor do enfrentamento com o mundo patriarcal.

 

A sombra do patriarcado

Esses temas aparecem, de diversas formas e com muitas variações em obras como Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, Lavoura arcaica, de Raduan Nassar; Mala onda de Alberto Fuguet, Demasiados héroes, de Laura Restrepo, La hora azul, de Alonso Cueto; Dois irmãos, de Milton Hatoum, Azul-corvo, de Adriana Lisboa, Galileia e, mais recentemente Dora sem véu, de Ronaldo Correia de Brito. À procura do pai perdido, romance de Mário Rodrigues, lançado esta semana, como Receitas para se fazer um monstro (Prêmio Sesc) e A cobrança, do mesmo autor, nominados como sua Trilogia Paterna, também se integra a essa tradição de narrativas de pais ausentes e de reencontro/enfrentamento a partir da volta à casa paterna.

Na verdade, a lista é bem maior. Isso demonstra que a fala de José Luiz Passos, em 2016, confirma a produtividade do tema do pai e suas variações. Mais: não apenas na literatura brasileira, mas formando uma tradição na literatura latino-americana. Ao me aprofundar na leitura dessa tradição, começo a refletir como essa “sombra do pai” está presente no imaginário latino-americano. Ela e reflete em práticas sociais nem sempre benéficas para o bem comum, como o paradigma patriarcal de dominação ao qual as personagens desses romances vão de encontro ou se integram é um inimigo que tem raízes muito mais profundas.

Em tempo: meu novo romance, Jerusalém, Jerusalém se passa numa cidade-estado latino-americana (?) num futuro (não-tão)distante. Nele, reflito sobre o paradigma patriarcal da dominação a partir de outra ótica, fugindo do nostos e da telemaquia. Em breve começarei o diário de escrita do romance, que recebeu apoio do Funcultura e que deve sair no ano que vem. Mas esta é outra história.

 

 

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4 Comentários
  • Artur Lins
    Postado às 17:30h, 17 janeiro Responder

    Não tinha ideia da riqueza da exploração desse tema aqui no continente. Mas fico com uma dúvida: por quê? Devido à violência a qual associo ao patriarcado, a um tipo de “macho” esperado pelo pai e que não se cumpre – lá vem psicanálise – à falta de carinho? Tudo isso e muito mais?
    Muito bom o texto. Abraços

    • Wellington de Melo
      Postado às 08:06h, 04 março

      Essa é uma das perguntas que rondam minha tese de doutorado. Tenho medo dela e da resposta. :)

  • Ademar
    Postado às 10:23h, 25 outubro Responder

    Caro Wellington, bem interessante esse ponto de vista. Estarei atento ao tema nas minhas leituras futuras. Um.grande abraço.

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