Ray Bradbury escreveu o clássico Fahrenheit 451, que nos apresenta um mundo distópico onde livros são incinerados pelos bombeiros a mando do governo. A ascensão da extrema-direita e do fascismo em diversos pontos do planeta parecia algo distante até as últimas eleições brasileiras, e o mundo ficcional de Bradbury em que o conhecimento é rejeitado, a ignorância e a truculência são virtudes nunca pareceu tão familiar. 

Por isso, citar Fahrenheit 451 seria só um clichê, de modo que prefiro citar outro livro de Bradbury, que, ainda que verse também sobre a faceta imperialista do autoritarismo, não se centra no objeto livro. Falo das Crônicas marcianas, que tem um trecho que me interessa. Nele, vemos o senhor Yll K:

(...) lendo um livro de metal com hieróglifos em relevo sobre os quais passava a mão, como se toca uma harpa. E do livro, à medida que seus dedos o percorriam, cantava uma voz, uma voz antiga e suave, que contava histórias de quando o mar banhava o litoral com um vapor vermelho e os homens punham em combate nuvens de insetos de metal e aranhas elétricas.

Esse vislumbre de Bradbury do que seria um livro marciano me faz pensar nesse artefato cultural metamorfo que vem sobrevivendo por milênios ao silêncio, às chamas, às trevas, que se adaptou de forma singular às circunstâncias da História e que segue ajudando a movê-la, aliás, a construí-la, a não esquecê-la. 

Das tabuletas de argila ao papiro e ao pergaminho, dos códices ao livro impresso, da tipografia ao linotipo, dele ao offset, da impressão digital ao e-pub, aos NFTs, e deles de volta às edições artesanais, aos livros cartoneros, à gráfica lenta, à recuperação de processos manuais. Nunca acreditei tanto em Eco e Carrière, “não contem no fim do livro”, disseram. Não contamos aqui, imagino, e por isso estamos aqui para discutir “o livro e seus mercados”[1]O texto é uma adaptação de minha fala em mesa redonda na 13ª Bienal do Livro do Ceará. 

E aqui, me permitam analisar o título do encontro, que me parece ter um crucial. Notem que no título do encontro temos “mercados” flexionado no plural. Ora, já nos condicionamos a ouvir “mercado editorial”, no singular, esse inclusive é o nome da coluna que assino no jornal Pernambuco, publicado pela Cepe Editora e editado pelo jornalista Schneider Carpeggiani (algumas dessas colunas você pode ler aqui).

 “Mercado editorial”, no singular, não dá conta da nossa realidade, e isso foi percebido com muita sensibilidade pela mulher-livro, Mileide Flores, que foi muito feliz em nos lançar essa provocação e que será o centro de minha fala. Para isso, tentarei explicar como vivo entre dois mundos, talvez não entre a Terra e Marte, como nas Crônicas de Bradbury, mas vivencio a pluralidade de mercados na prática.

Cepe Editora

Atualmente ocupo o cargo de editor da Cepe Editora, braço da Companhia Editora de Pernambuco que publica livros e periódicos, com mais de 400 títulos editados nos últimos 10 anos, quando uma série de medidas foram implementadas para profissionalizar ainda mais o trabalho que já vinha sendo feito havia mais de 40 anos pela Companhia, responsável pela publicação do Diário Oficial de Pernambuco. 

A Cepe  se modernizou e hoje oferece também serviços de digitalização e guarda de documentos para empresas e governos, certificação digital, e possui um parque gráfico que é acessado por autores e editoras independentes da região.

Desde minha entrada na editora, implementei um modelo de gestão de informação e processos que otimizou a produção de livros, o que se percebeu já imediatamente pelos dados: saímos de uma média de 42 livros até 2017 para 81 livros no ano passado. Nosso catálogo envolve os segmentos de Artes, Literatura e Não-ficção, incluindo também o segmento infantil e infanto-juvenil. A Cepe possui dois prêmios nacionais próprios para originais — que, por sinal, estão abertos até o dia 20 de setembro —, que distribuem 80 mil reais em premiação em cinco categorias. Aperfeiçoamos também o processo de inscrições destes editais, que hoje é feito totalmente on-line.

Além do Diário Oficial, publicamos o já mencionado Suplemento Pernambuco, que antes vinha encartado no DO, mas hoje é um dos principais jornais de literatura do país, com distribuição em pelo menos 13 capitais. Também publicamos a revista Continente, editada pela jornalista Adriana Dória, uma das publicações mais respeitadas de jornalismo cultural do país, com mais de 15 anos de história. Hoje, a Cepe Editora vem se firmando como uma das principais editoras ligadas às imprensas oficiais do país.

Experiência editorial

Como uma editora pública, a Cepe Editora está numa situação privilegiada frente às editoras da iniciativa privada, mas, por um lado, não nos vemos como concorrentes, já que a Companhia vem investindo no fomento às iniciativas editorais locais, por exemplo, promovendo feiras na região para estimular o ecossistema da região, como a Fenagreste e a Fenelivro, que acontecem em setembro e outubro, respectivamente. 

Por outro lado, a Cepe Editora enfrenta os mesmos problemas de distribuição que as editoras que estão fora do eixo Rio-São Paulo ou das pequenas editoras de lá, e precisa também encontrar soluções criativas para a implosão das grandes redes de livrarias, por exemplo. Temos investido em lojas próprias físicas na capital, mas mantemos a distribuição nas livrarias locais e seguimos investindo nas pequenas redes nacionais. Paralelamente, comercializamos nossos livros, ainda com um volume reduzido, em nosso site, mas iniciamos o trabalho de distribuição em market places.

Minha experiência editorial, no entanto, começou em meados dos anos 2000 como a de muitos escritores, por meio da necessidade de auto-publicação. Intensificou-se, no entanto, a partir a criação do coletivo artístico editorial Mariposa Cartonera, do qual faço parte. O coletivo surgiu do meu contato com o fenômeno cartonero, nascido durante a crise econômica Argentina de 2003. 

Naquele momento, um grupo de editores viu-se impedido de publicar pelo preço proibitivo do cartão supremo que usavam para as capas de seus livros. Os fundadores da Eloísa Cartonera tiveram uma ideia criativa: fazer capas únicas com papelão coletado nas ruas ou comprado de catadores, que eram pintados à mão e colados a miolos previamente impressos. 

Em 2006, Javier Barilaro, um dos fundadores da Eloísa Cartonera, participou da Bienal de Arte de São Paulo e desenvolveu uma oficina com artistas plásticos e catadoras da Cooperglicério. Desta iniciativa, com a liderança da arte educadora Lúcia Rosa, surge no mesmo ano a Dulcineia Catadora, primeira editora deste modelo no Brasil. 

Em 2012, quando eu ocupava o cargo de coordenador da pasta de Literatura do Estado, convidei Lúcia Rosa a dar uma oficia para catadores e escritores da cidade de Garanhuns, a partir da qual fundou-se a primeira editora cartonera pernambucana, a Severina Catadora. No ano seguinte, fundei a Mariposa Cartonera, partindo dos mesmos princípios do fenômeno cartonero: economia solidária, comércio justo e sustentabilidade.  

Editoras e militância

O fenômeno cartonero espalhou-se por todo o globo e hoje há exemplos de coletivos artístico-editorias, com um grau de formalização heterogêneo, em todos os continentes. Um estudo da USP, de 2016, revelava mais de uma centena de cartoneras ativas, sendo 57% na América do Sul, 25% na América do Norte, 5% na América Central e 13% entre Europa e África. No Brasil, a predominância de editoras cartoneras ficava justamente em Pernambuco, com 42% das cartoneras mapeadas, seguidas de São Paulo e Rio Grande do Sul, que juntas somam 32%.

Embora acredite que os números não são precisos, pois muitas cartoneras que sabia ativas naquela época não apareceram no estudo, e outras que estavam inativas figuravam na lista, é interessante notar como o fenômeno cartonero encontra historicamente maior aderência em zonas periféricas, seja no plano mundial seja no plano nacional. 

Mesmo nas zonas, digamos, mais metropolitanas, o fenômeno surge como uma alternativa ao mercado editorial convencional e ocupa espaços negligenciados ou que não interessam ao grande capital. Essa complementariedade significa que não há, ao menos incialmente, uma relação de concorrência com o dito “grande mercado” e, o fenômeno cartonero, como acontece com outras iniciativas editorais independentes artesanais, acabam funcionando, por um lado, como ponto de resistência de práticas editoriais tradicionais e, por outro, como laboratório de experimentações.

Percebe-se, por outro lado, que muitas editoras cartoneras, e a Mariposa se coloca ao lado destas, têm em paralelo uma ação política para além da militância editorial, defendendo causas de minorias, lutando contra modelos de gentrificação e exclusão social etc. Essa não é uma exclusividade do fenômeno cartonero, obviamente, pois temos diversos exemplos de editoras que se posicionam ideologicamente de forma mais ou menos clara, sendo esse posicionamento inclusive uma forma de marcar espaço no mercado.

Editoras e grandes autores

No entanto, confundir o fenômeno cartonero com ativismo ou trabalho social é um equívoco: ainda que parta de paradigmas de consumo e comércio diferentes do dito “grande mercado”, as editoras cartoneras movimentam solidariamente a economia em seu entorno e revigoram a paixão pelo artefato livro de uma maneira peculiar. Não se trata de tomá-lo como fetiche, pois os livros cartoneros são vendidos por preços acessíveis, não se entendem como livros de artista.

Ao mesmo tempo, as editoras cartoneras trabalham tanto em função de um público leitor que não é foco das editoras convencionais, como também divide a atenção e os espaços de maneira complementar com certa faixa de público consumidor de livros industrializados. Essa ambivalência, nem sempre compreendida, já gerou acusações de “traição da causa” que não se justificam, se retomamos as origens da própria Eloísa Cartonera.

Assim como aconteceu na Argentina com a editora mãe do fenômeno cartonero, onde grandes autores nacionais lançaram livros pela editora, no Brasil também diferentes gerações de autores vem publicando em formato cartonero, em paralelo a suas obras em editoras convencionais. A Dulcineia Catadora foi pioneira,  mas cito Marcelino Freire, Ronaldo Correia de Brito, Maria Valéria Rezende, Micheliny Verunschk, José Luís Passos, Ricardo Lísias, Julián Fuks e Sidney Rocha, autores premiados que a Mariposa Cartonera editou. 

Exemplos exitosos

Cito dois exemplos interessantes: o livro Atlântico, de Ronaldo Correia de Brito, foi semifinalista do Prêmio Oceanos, um feito inédito se pensarmos que estamos falando de uma edição de 100 exemplares, feitos à mão, que nunca tocaram as prateleiras de uma livraria. E se o reconhecimento numa premiação não for um parâmetro, cito o livro aDeus, do poeta Miró da Muribeca, que já vendeu mais de 4.000 exemplares, parâmetros interessantes para um livro de poesia de um autor negro, periférico, que não tem um agente literário e com uma edição feita artesanalmente. 

O caso de Miró me lembra uma fala de ontem da colega Simone Paulino, que esclarecia que o autor deve envolver-se no processo de vendas para que se tenha sucesso no mercado, que já não há torres onde o escritor pode se esconder. Citava o exemplo de O peso do pássaro morto, e da energia da autora Aline Bei em vender seu trabalho. Eu fui abordado por ela no Instagram e achei incrível o entusiasmo e iniciativa. Sem firulas, com humildade e firmeza, a abordagem foi antes do prêmio, mas eu só compraria o livro mais tarde. Concordo tanto a atitude de Alice como a fala de Simone: é preciso ocupar os espaços — este é o verbo da segunda década de 2000 — e, quando não houver, é preciso criá-los.

Mercado editorial e física quântica

A física quântica aborda um tema do qual eu gosto muito, que é o colapso da função de onda. Não dá pra explicar com todos os termos técnicos, nem eu conseguiria, mas dito da maneira mais tosca possível, é como se, a partir do olhar do observador, um objeto quântico, que é um objeto hipotético, imponderável, passasse a deixar de ser ondas e adquirisse matéria. Ora, não é preciso pensar em ficção científica aqui: é a poiesis de Aristóteles, é o poder criador da literatura. 

Profissionais do livro, com nosso olhar, temos a capacidade de transformar o imponderável em oportunidades. Temos a possibilidade de dobrar o espaço do mercado, para me apropriar de outro termo quântico. Por isso, falar de “mercados” em vez de “mercado” é tão oportuno como falar de “realidades” em vez de falar de “realidade”. São universos paralelos que são percebidos às vezes apenas de relance, mas que são reais e têm características e regras próprias — como um multiverso de tipo 4.

Por isso, quando falamos de “mercados”, no plural, precisamos analisá-los como ecossistemas que, se são interdependentes e integram, em maior ou menor medida, o “mercado” no singular, também têm singularidades que podem ser identificadas pelo cotejo de algumas características que, vistas sob a lupa da pluralidade, se comportam de maneira distinta. 

Mais ou menos o que acontece, e falo pela última vez em física quântica, com o contraste entre a teoria da gravitação universal e a teoria das super cordas. Se a olho nu estas cadeiras em que estamos sentados estão estáveis e sólidas, a nível subatômico são como cordas vibrando incessantemente.  Assim, os “mercados” são onde a vida efetivamente acontece, têm menos da abstração do “mercado” no singular e mais da concretude da práxis. 

Propostas para os mercados

Elenco aqui  uma proposta de oito questões que considero importantes para analisar esse microuniverso dos “mercados” no plural: 

1) o volume potencial de cada mercado local, pensando que muitas vezes isso determinará o tamanho de uma editora, sua sobrevivência ou expansão, mesmo considerando a possibilidade de expansão por meio de ferramentas de distribuição digital;  

2) as peculiaridades de distribuição, considerando a existência ou não de livrarias, as potencialidades do e-commerce e o tamanho que ele ocupa no volume de vendas, a existência ou não de distribuidores locais, o que pode obrigar aquele mercado a criar alternativas criativas como feiras independentes, eventos de circulação, saraus etc.; 

3) o perfil do público atendido — num país continental como o Brasil isso é essencial —, e penso, por exemplo, no público atendido pela Livraria Lamarca, aqui de Fortaleza, e como editoras que compartilhem esse público leitor deveriam apoiar essa iniciativa; 

4) os meios de produção disponíveis — a existência ou não de parques gráficos locais, a disponibilidade de profissionais do livro capacitados, a capacidade e interesse de aproveitar a mão de obra local; 

5) o grau de formalização dos negócios editoriais — há um grande número de editoras que escapam de mapeamentos oficiais pois se enquadram mais como coletivos editorias, e a Mariposa Cartonera é um exemplo; 

6) a presença do investimento público e seu impacto no mercado editorial — seja por meio de bancos de fomento, microcrédito, editais de publicação e tradução ou mesmo a relação que se estabelece entre editoras públicas como a Cepe e as editoras da iniciativa privada; 

7) a biblio-diversidade possível dentro de cada ecossistema, pois, por exemplo, há um mercado de literatura de cordel, por exemplo, que vai muito bem, obrigado, e que se retroalimenta a partir de uma tradição de leitura arraigada; 

8) o modelo econômico em que se baseiam os negócios, já que, por exemplo, se partimos de um modelo de economia solidária, certos princípios do capitalismo puro perdem o sentido — já pensou que podemos querer nos manter exatamente do tamanho que estamos? Que o paradigma do crescimento é uma ideia capitalista e que nosso plano é aprofundar nossa existência sobre a Terra fazendo o que amamos? Tempo não é dinheiro, disse Candido, “Tempo é o tecido da nossa vida”.

Alienígenas do mercado

Tudo o que disse pode ter soado estranho em alguns momentos. Não há qualquer problema, porque nós que trabalhamos com livros, esses seres tão peculiares, deveríamos estar acostumados à estranheza. Lembro, então, o final das Crônicas marcianas, que citei no começo de minha fala:

Chegaram ao canal, comprido, retilíneo, fresco, molhado que refletia a noite. — Sempre quis ver um marciano — disse Michael. — Onde eles estão pai? Você prometeu. — Ali estão eles — disse o pai, virou Michael e apontou para baixo. Os marcianos estavam lá. Timothy começou a tremer. Os marcianos estavam lá, no canal, refletidos na água. Timothy, Michael, Robert, a mãe e o pai. Da água ondulante, os marcianos ficaram olhando para eles por um longo, longo tempo silencioso...

Talvez sejamos alienígenas, marcianos que insistem em tentar conviver com as diferenças, a reconhecer no outro a beleza e não o ódio. Talvez um dia descubramos que somos, todos, alienígenas que buscam seu lugar no universo. Esse lugar talvez seja apenas uma cidade e seus livros.

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References

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1 O texto é uma adaptação de minha fala em mesa redonda na 13ª Bienal do Livro do Ceará.
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