A tradução literária é um desafio que nos coloca entre o respeito ao estilo do autor e a tentativa de recriar os efeitos de uma experiência de leitura em outra língua que não a original. Aqui, apresento minha versão para um de meus contos favoritos de Borges, a quem traio com esta tradução: A casa de Astério, publicado em El aleph (1949).

O conto fará parte de meu curso de leitura que acontecerá no Festival de Inverno de Garanhuns, dentro da programação de Literatura da Praça da Palavra. Será uma edição especial do projeto Laboratório: Literatura & Crítica, que aconteceu no começo da década no Recife e sobre o qual falarei depois.

A casa de Astério

E a rainha deu à luz um filho
que se chamou Astério.

APOLODORO: Biblioteca, III, I

Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia, e talvez de loucura. Tais acusações (que eu castigarei a seu devido tempo) são irrisórias. É verdade que não saio de minha casa, mas também é verdade que suas portas (cujo número é infinito) estão abertas dia e noite aos homens e também aos animais. Que entre quem quiser. Não encontrará aqui pompas feminis nem o extravagante aparato dos palácios, mas sim a quietude e a solidão. Assim, encontrará uma casa como não há outra na face da Terra. (Mentem os que declaram que no Egito há uma parecida). Até meus detratores admitem que não há um só móvel na casa. Outra ideia ridícula é que eu, Astério, sou um prisioneiro. Repetirei que não há uma porta fechada, agregarei que não há uma fechadura? Além disso, em algum entardecer pisei a rua; se antes da noite voltei, fi-lo  pelo temor que me infundiram os rostos da plebe, rostos descoloridos e achatados, como a mão aberta. Já havia se posto o Sol, mas o desvalido pranto de uma criança e as toscas súplicas da grei disseram que me haviam reconhecido. O povo orava, fugia, prosternava-se; alguns escalavam o estilóbata do templo dos Machados, outros juntavam pedras. Algum, creio, ocultou-se sob o mar. Não em vão foi uma rainha minha mãe; não posso confundir-me com o vulgo; ainda que minha modéstia o queira.

O fato é que sou único. Não me interessa o que um homem possa transmitir a outros homens; como o filósofo, penso que nada é comunicável pela arte da escrita. As irritantes e triviais minúcias não têm espaço em meu espírito, que está capacitado para a grandiosidade; jamais reti a diferença entre uma letra e outra. Certa impaciência generosa não consentiu que eu aprendesse a ler. Às vezes o deploro, porque as noites e os dias são longos.

Claro que não me faltam distrações. Igual ao carneiro que vai investir, corro pelas galerias de pedra até rolar pelo chão, nauseado. Escondo-me à sombra de um poço ou à volta de um corredor e finjo que me procuram. Há terraços de onde me deixo cair até me ensanguentar. A qualquer hora posso fingir que estou adormecido, com os olhos fechados e a respiração poderosa. (Às vezes durmo realmente, às vezes mudou a cor do dia quando abri os olhos.) Mas, de tantas brincadeiras, a que prefiro é a do outro Astério. Finjo que vem visitar-me e que lhe mostro a casa. Com grandes reverências digo-lhe: “Agora voltamos à encruzilhada anterior” ou “Agora desembocamos em outro pátio” ou “Bem dizia eu que te agradaria a calha” ou “Agora verás uma cisterna que se encheu de areia” ou “Já verás como o porão se bifurca”. Às vezes, me confundo e nos rimos de bom grado os dois.

Não só imaginei esses jogos; também meditei sobre a casa. Todas as partes da casa existem muitas vezes, qualquer lugar é outro lugar. Não há um poço, um pátio, um bebedouro, uma manjedoura; são catorze [são infinitos] as manjedouras, bebedouros, pátios, poços. A casa é do tamanho do mundo; ou melhor, é o mundo. Contudo, de tanto cansar pátios com um poço e poeirentas galerias de pedra cinza, alcancei a rua e vi o templo dos Machados e o mar. Isso não entendi até que uma visão da noite me revelou que também são catorze [são infinitos] os mares e os templos. Tudo existe muitas vezes, catorze vezes, mas duas coisas há no mundo que parecem existir uma só vez: acima, o intrincado Sol; abaixo, Astério. Talvez eu tenha criado as estrelas e o Sol e a enorme casa, mas já não me lembro.

A cada nove anos entram na casa nove homens para que eu os liberte de todo o mal. Ouço seus passos e sua voz no fundo das galerias de pedra e corro alegremente a procurá-los. A cerimônia dura poucos minutos. Um após outro caem sem que eu ensanguente as mãos. Onde caíram, permanecem, e os cadáveres ajudam a distinguir uma galeria das outras. Ignoro quem são, mas sei que um deles profetizou, na hora de sua morte, que algum dia chegaria o meu redentor. Desde então, não me dói a solidão, porque sei que vive meu redentor e no fim se levantará sobre o pó. Se meu ouvido alcançasse todos os rumores do mundo, eu perceberia seus passos. Tomara que me leve a um lugar com menos galerias e menos portas. Como será meu redentor?, pergunto-me. Será um touro ou um homem? Será talvez um touro com rosto de homem? Ou será como eu?

O sol da manhã reverberou na espada de bronze. Já não havia nenhum vestígio de sangue.

— Acreditarás, Ariadne? — disse Teseu —. O minotauro mal se defendeu.

Para Marta Mosquera Eastman

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