Pensei num termo para designar o projeto que o vereador bolson4rista Fred Ferreira (PSC) apresentou à Câmara de Vereadores do Recife, mas não consegui. Segundo o caput do projeto de lei que será levado à votação amanhã (16 de maio), seu objetivo é a “vedação do uso de novas formas de flexão de gênero e de número das palavras da Língua Portuguesa, em contrariedade às regras gramaticais consolidadas no país e aprovadas pela Comunidade Lusófona, no município do Recife”. 

Segundo seu autor, esse projeto, “constitui uma forma de defesa, não somente da educação correta e regular de nossa Língua, mas também da cultura brasileira e dos valores desta Nação e de nossas famílias, detentoras do direito inalienável do uso do Português na forma e no conteúdo corretos, sem perversões e alterações maliciosas e progressistas de suas bases”.

O projeto é tão estapafúrdio que me faltaram palavras. Simplesmente não consegui encontrar o conceito que descrevesse com precisão o que representa para mim a proposta. Vivo na cidade do Recife, que tem muitos problemas a serem combatidos e que poderiam ser objeto de leis que melhorassem a qualidade de vida da população. Mas, para o vereador Fred Ferreira, o mais importante a discutir é o uso da linguagem neutra.

Linguagem neutra?

Na justificativa, escrita por seus(suas) assessores(as) (curioso em saber qual deles(as) é o(a) linguista – percebam que “linguista” é um substantivo comum de dois gêneros, que serve tanto para o masculino como para o feminino),  afirma-se que o uso do gênero neutro fere o “acordo ortográfico”. Curiosamente, o fenômeno a que se referem é de natureza morfossintática, não ortográfica. Em outro trecho, afirmam que a linguagem neutra poderia prejudicar pessoas com deficiência, que desaprenderiam a escrever. Fonte? Vozes das cabeças dos(as) assessores(as).

No artigo 2º do projeto, nota-se que os(as) responsáveis por sua redação não sabem do que falam. “Nos estabelecimentos formais educacionais, é vedado o emprego de linguagem que, corrompendo as regras gramaticais estabelecidas e aprovadas no país, pretenda se referir a gênero neutro”. Ora, o vereador ou seus assessores(as) linguistas estariam pensando no emprego dos demonstrativos neutros “isto” e “isso”, que ninguém usa segundo a “regra” no Brasil? 

Nem vou explicar o que é anáfora e catáfora, porque podem pensar que é alguma doença. Não, o vereador e os(as) assessores(as) acham que usar “todes” em vez de “todos/todas” vai mudar a engenharia mental de nossa população e incutiria algum tipo de “ideologia de gênero” (seja lá o que isso for) na juventude. Façam-me o favor, assessores(as). Aliás, usei tanto -os/-as, seus/suas por aqui, que usar linguagem neutra até ajudaria.

Ignorância ou preconceito?

Gostaria de acreditar que o vereador é apenas um ignorante. No sentido bom da palavra. Ele talvez ignore que, há pelo menos meio século, a concepção de língua estática, compreendida como uma estrutura imóvel a ser preservada é, minimamente, questionável. Na verdade, hoje, pensar que uma língua é imutável, que corresponde apenas ao que propõe as “regras gramaticais” é um absurdo. Talvez o vereador Fred Ferreira e seus(suas) assessores(as) (usar só “assessores” é a mesma coisa que usar “todes”?) ignorem que as línguas só sobrevivem enquanto existe um processo contínuo de negociação entre os falantes. São eles quem verdadeiramente a preservam, mas também a adaptam a novas realidades, e, em última instância, a modificam. 

Uma visão imobilista de língua, como a que baseia este projeto, pensa um idioma como um construto que não se renova. Quem apoia um projeto desses, deve ser contra a evolução da língua e da sociedade. Se no Recife do século XIX tivéssemos um vereador e assessores(as) tão sagazes (existe “sagazas”?) como Fred Ferreira e seus(suas) auxiliares (comum de dois gêneros, hein?),  hoje seríamos revolucionários(as). Recife estaria na vanguarda do Brasil. Diríamos “carroça motorizada” em vez de automóvel  (registrado pela primeira vez em 1899) ou “jogo que se joga com os pés” em vez de futebol (que nasceu com a República, em 1889). Nenhum desses termos fazia parte da  “cultura brasileira e dos valores desta Nação e de nossas famílias”, trecho da justificativa do projeto que escreveram os(as) assessores(as). Mas não entendo de carros nem de futebol.

Língua e transformação

Expressões, vocábulos e até mesmo tempos verbais podem entrar e sair de uso ao longo dos séculos.  Não é ideologia, é um processo normal na evolução das línguas. Por exemplo, a língua brasileira é essencialmente proclítica (usamos muito mais os pronomes diante dos verbos), enquanto em Portugal predomina a ênclise (pronome posto depois do verbo). Nem em Portugal nem no Brasil usamos mais a mesóclise. A família brasileira não ruiu porque dizemos “Te amo” em vez de “Amo-te” ou porque Roberto disse que “Eu te darei o céu meu bem e o meu amor também”, em vez de “Dar-te-ei”, apesar da rima fuleira.

Dependendo da situação em que usamos a língua, de quem é o interlocutor, do objetivo de determinado texto, optamos por tal ou qual forma. Costuma-se dizer que todo falante deve ser um poliglota de sua própria língua, ou seja, deve saber que variedade é mais adequada a cada contexto. Esse é apenas um dos aspectos que dão conta de quão viva é uma língua, de como ela não é parada por decretos, leis ou estatutos, mas se move de acordo com as necessidades de seus usuários.

Como morrem as línguas

Tudo o que falei refere-se a línguas vivas, ou seja, línguas que servem ao propósito de comunicação entre falantes que interagem, trabalham, amam, comem, debatem, fazem sexo, oram a seu(s) deus(es), enfim, vivem a partir dessa língua. Mas quando uma língua é considerada morta? Respondo: quando não é mais usada em interações reais e espontâneas e, por isso, não mais é renovada de forma “natural”. Há um tempo, o vaticano precisou publicar um documento com termos em latim que não existiam e que tiveram que ser “criados” artificialmente.

Se falamos de línguas mortas, o conceito de preservação faz sentido. Mas não precisamos preservar o latim. Ele já tem seus defensores. Matamos centenas de línguas indígenas no Brasil, assim como matamos centenas de povos. Mesmo os que não foram dizimados, em muitos casos, perderam sua língua originária. Esse (não “este”, porque é uma anáfora, certo, vereador?) processo tem um nome: glotocídio, quando, a partir da pressão de uma língua dominante, enfraquece-se uma língua local. Nesse sentido, um projeto que visasse à preservação de línguas indígenas perdidas, seria pertinente. Mas claro que não partiria desse vereador algo assim.

Chamada pelo bom senso

Por isso, quando li o projeto do vereador bolson4rista, contive meu riso. Não era questão de riso, como o tom que usei até aqui pode insinuar. É uma questão triste, porque a proposta do vereador Fred Ferreira não é só preconceituosa e desprovida de fundamentação científica. É criminosa, porque atenta à vivacidade da língua portuguesa, a última flor do Lácio, que ao longo dos séculos manteve-se viva transformando-se constantemente. 

Qual termo eu poderia usar para definir a proposta do bolson4rista? Procurei no Google, não encontrei. Decidi então criar um neologismo: glossocídio. Não precisa, vereador, pedir para que seus assessores busque no dicionário. O vocábulo é formado por dois radicais: “glosso”, que se refere a “língua” e “cídio”, que se refere a “assassinato”. 

Glossocídio. s. m.  extermínio deliberado, parcial ou total, de uma língua.

Mas, compreendendo que esses argumentos do vereador não têm fundo científico dentro do ramo da sociolinguística, espero que o bom senso prevaleça entre os demais vereadores da casa, que não gostariam de associar-se a ideia tão absurda. Espero que não passemos vergonha diante a comunidade científica internacional por ser uma cidade que tentou um “glossocídio” de uma língua nacional.

Pensando bem, é uma proposta revolucionária a do vereador. Ambiciosa, até. Matar uma língua, impedir que ela avance e que novos termos, expressões ou arranjos gramaticais surjam simplesmente porque ele quer. Se tivesse sucesso, entraria para a História. Num mundo distópico, diríamos que a língua portuguesa começou a morrer no Recife, a partir do projeto do vereador Fred Ferreira, o “glossocida”. Acabei de criar outro vocábulo. Onde vou parar? Ah, língua portuguesa, quantas possibilidades. Como matar-te?

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